Por Amauri Soares*
As Causas da Nossa
Dependência Histórica
Dependência Histórica
Nenhum país da América Latina e do Caribe teve um processo de desenvolvimento capitalista típico, como o que foi gestado na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos, dentre outros. As glórias do capitalismo, e da república como forma de governo correspondente, não chegou à América Latina e ao Caribe, e nem pode chegar. Não tivemos revolução democrática nem revolução nacional, e sequer tivemos a reforma agrária. Mesmo os países maiores e mais desenvolvidos do ponto de vista capitalista do nosso imenso continente, como o Brasil, a Argentina, o Chile, o México, não tiveram a oportunidade de contar com uma revolução burguesa que instituísse os direitos civis plenos, a distribuição da terra e a constituição de um projeto de desenvolvimento nacional autônomo. Desde 1500, fomos dependentes e subordinados ao desenvolvimento europeu, até que os Estados Unidos da América assumiram a hegemonia sobre nossa dependência, já no século XX.
Servimos como base para a acumulação primitiva do capital comercial no período do mercantilismo clássico, mandando ao centro econômico e político do mundo pau Brasil, ouro, prata, cana de açúcar, algodão, madeira, borracha, café. No século XVIII, o impulso capitalista, com as novas formas de produção, a maquinaria, a grande indústria européia foi possível pelas matérias primas enviadas daqui e de outras partes do mundo. O suor de indígenas e de africanos feitos escravos serviu para a acumulação primitiva de capital, assim como outros continentes “ajudaram” na tarefa histórica de propiciar aos europeus a modernização das forças produtivas, os saltos qualitativos na ciência e na técnica, conjunto que possibilitou o surgimento do capitalismo propriamente dito, da exploração de mais valia na forma moderna dos últimos 250 anos.
A América do Norte, a exceção do México, mesmo tendo sido colonizada no mesmo período histórico, teve a oportunidade de dar o grande salto à modernização produtiva, através de uma revolução agrária (divisão da terra), de uma revolução nacional e de uma revolução democrática. Os Estados Unidos aboliu a escravidão, distribuiu as terras e tornou-se independente da Inglaterra por um processo democrático de luta popular, estabelecendo dessa forma as condições para o desenvolvimento pleno de suas forças produtivas e para a instituição de um Estado Nacional soberano. Romperam, pela força das armas, as amarras que a velha Europa queria continuar lhes impondo, e puderam se desenvolver plenamente do ponto de vista capitalista por que realizaram esse processo de emancipação nacional. É comum em Nossa América ser aceita a tese elitista de que nós não nos desenvolvemos porque nosso povo é preguiçoso, porque fomos colonizados por “bandidos” dos quais a velha Europa se livrou, degredando aqui. Esta tese é preconceituosa e cumpre muito bem o objetivo de dissimular os reais motivos do nosso atraso histórico. Também para os Estados Unidos foram degredados os, à época, indesejáveis defensores da “reforma protestante”, e isso não interferiu negativamente no desenvolvimento daquele povo, talvez pelo contrário. O que impediu nosso desenvolvimento econômico, social e político foi termos nos permitido ficar, sempre, obedecendo ordens da Europa, primeiro da Espanha e de Portugal e, depois, da mesma Inglaterra que colonizava os Estados. A ausência de um processo autônomo de independência, que fosse mais que uma formalidade na superestrutura política e representasse de fato uma autonomia econômica e social, além da autonomia política, esse é o motivo do nosso atraso. As mudanças aqui, foram realizadas pelas mesmas classes dominantes internas, quase sempre com o aval da dominação externa. Mesmo os processos autônomos, como os levados à frente por Bolívar na região andina, por José Martí em Cuba e mesmo a própria revolução mexicana do começo do século XX, com o passar do tempo foram descaracterizados, ficando o poder econômico e político novamente na mão das oligarquias internas que aceitaram com docilidade e subserviência a condição de sócio menor dos interesses externos, da Europa inicialmente, e dos Estados Unidos à partir do período entre as duas guerras mundiais.
A América Latina e o Caribe desenvolveram-se de forma não clássica. Os povos que o fizeram, como os mexicanos, os haitianos, os cubanos, os andinos, os paraguaios e os uruguaios tiveram reveses com o passar das décadas e séculos, permanecendo nesse período histórico dos últimos duzentos anos como os demais países da América Latina e do Caribe. O Brasil pode ser um bom exemplo de como foi diferente nosso processo de inserção no mundo moderno: não tivemos revolução nacional, nem revolução democrática e nem reforma agrária. Não tivemos nem transformações substanciais das condições de desenvolvimento, quanto mais uma revolução burguesa clássica. As mudanças, no Brasil e na maioria dos países vizinhos, foram feitas através do acordo das elites, desde a declaração de independência, passando pela instituição da república, até a última transição “democrática” da década de 1980. Passamos por estes duzentos anos de história fazendo a reciclagem das velhas formas, sem salto qualitativo de alguma expressão popular, nacional ou democrática. No Brasil e no vasto sub-continente as classes dominantes souberam, pela violência contra seus compatriotas e pela aceitação das ingerências externas, manterem-se dominando na economia e na política, camuflando-se de republicanas mesmo quando traziam todos os traços ideológicos e todas as chibatas da oligarquia monárquica. Se a nobreza da Inglaterra e de outros países europeus aprendeu a conviver com a modernidade capitalista e com suas instituições republicanas e democráticas, na América Latina os pseudo republicanos (os mestiços da classe dominante) conseguiram realizar a passagem para o capitalismo sem alterar a essência oligárquica das instituições, sem realizar a revolução democrática e nacional e sem permitir a reforma agrária. E isso nos segurou no atraso em que vivemos. Nossa classe dominante preferiu a proteção dos países mais fortes do ponto de vista capitalista do que o risco de conclamar seu próprio povo para as transformações estruturais necessárias ao desenvolvimento pleno, mesmo que do próprio capitalismo. A nobreza italiana (e de outros países europeus de desenvolvimento econômico tardio) soube “entregar os anéis para não perder os dedos” (frase emblemática do livro e do filme “O Leopardo”). A nossa oligarquia não entregou nem os anéis, e preservou os dedos protegendo-se junto aos braços aconchegantes e cheios de segundas intenções dos países mais desenvolvidos, como a Inglaterra e, já no século XX, os Estados Unidos. Para exemplificar, nossa classe dominante, acatando todas as exigências da Inglaterra, deixou de desenvolver a indústria em nosso país até o final do século XIX, e ainda fez o trabalho sujo, junto com a Argentina e o Uruguai, de massacrar o povo paraguaio (1865-75, no que convencionou-se chamar “Guerra do Paraguai”), que desenvolvia sua indústria, mesmo à revelia da Inglaterra. A transição pelo alto fica clara até mesmo nos episódios mais recentes: José Sarney era destacado dirigente da ARENA golpista de 1964, mas filiou-se ao PMDB para ser vice-presidente na chapa de Tancredo Neves, em 1984. Este morreu, e a ARENA continuou governando o país. Agora, Sarney é defensor do governo Lula, e a recíproca é verdadeira. Continuam os acertos por cima, até mesmo quando lideranças populares são alçadas a cargos de dirigentes. Também é comum a cooptação de lideranças populares, e essa talvez seja a maldição que mais congela a vontade de lutar do nosso povo: ao longo das décadas e dos séculos, a maior parte dos líderes populares acabam servindo para a execução das tarefas exigidas pelas classes dominantes internas e pelo imperialismo. O líder popular que não aceita trocar de lado, de método e de programa, será perseguido e satanizado até desaparecer. Quando a classe dominante não consegue nem cooptar e nem calar pela força ou por meio diverso uma liderança popular, está-se diante de um processo de avanço da luta, que pode ser maior ou menor, dependendo das condições objetivas e subjetivas possíveis.
Engana-se ou mente quem fala da possibilidade dos países latino-americanos e caribenhos desenvolverem-se a ponto de terem um dia uma modernização capitalista tão abrangente quanto o foi o capitalismo na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá. Agora virou moda chamar os países que estão na condição do Brasil e “países emergentes”, e isso é uma falsificação da verdade, pois o que continuamos sendo é subdesenvolvidos, subordinados e dependentes aos países centrais do sistema capitalista. Pode-se com honestidade imaginar que o Brasil e países na mesma situação venham a desenvolver-se e ser um dia mais uma potência mundial. Esse é um conceito errado, pois só pode haver “potência mundial” com relação aos demais países do mundo. Para que o Brasil seja uma potência mundial nos conceitos do capitalismo, é preciso que muitos outros países sejam subordinados ao Brasil, do ponto de vista econômico e político, e isso não aconteceria mesmo que o Brasil viesse de fato a realizar a sua revolução nacional, democrática e agrária, porque as potências mundiais já existentes tratam de manter os espaços que têm, e avançar sempre mais. Esse conflito entre potências é que provoca as guerras mais intensas, como as duas grandes guerras do século XX. Outras ainda podem ser levadas à cabo, pois cada Estado Nacional dos países desenvolvidos existe para defender os interesses econômicos e comerciais das suas grandes empresas, dos seus monopólios. A General Motors, a Coca Cola, a Ford são monopólios cuja matriz fica nos Estados Unidos. Tente alguém provocar algum prejuízo a estas empresas para ver se o exército americano não desce, no caso de não haver outra forma de resolver o impasse.
É por isso que estamos afirmando a impossibilidade de países hoje subdesenvolvidos (ou em desenvolvimento, ou emergentes, ou qualquer eufemismo que queiram usar) saírem desta situação e assumirem também o papel de “potência mundial”, um conceito inadequado para qualquer pessoa que defenda a dignidade universal do ser humano. Estamos, há mais de cem anos, em tempos de imperialismo, cujo conceito é: fusão do capital industrial com o capital financeiro, e podemos agregar também, para nossos dias e para nosso continente, fusão do capital industrial com o capital financeiro e com o capital agrário. Isso impede qualquer desenvolvimento independente de qualquer país do mundo por dentro da lógica do capitalismo. Aqui teríamos que dedicar algum tempo para a leitura desses conceitos, e de como eles se desenvolveram ao longo dos dois últimos séculos. Sigamos em frente, no entanto, afirmando que o capitalismo é um sistema mundial interdependente, onde os mais desenvolvidos massacram os menos desenvolvidos. A economia capitalista sempre foi globalizada, de forma “desigual e combinada”, entre as diversas realidades sócio-econômicas desde antes de nascer com sua forma típica dos últimos 250 anos, e não tem novidade nesse aspecto. O conceito de “globalização” que pretendem impor atualmente é falso, pois ela existe há séculos como forma de opressão de dominadores sobre dominados, e jamais como forma de respeito mútuo. E assim seguirá sendo enquanto houver capitalismo, pois essa forma de exploração é típica e inexorável no capitalismo. Não pode haver capitalismo sem exploração e sem opressão das economias mais desenvolvidas sobre as economias mais frágeis, e esta condição foi definida historicamente e não pode ser mudada, não nas condições aceitas pelo imperialismo e pelas classes dominantes internamente a cada país da Nossa América. O conceito de “globalização” é uma manobra ideológica para esconder uma realidade objetiva, de opressão e exploração imperialista. Trocar o nome dos fenômenos, ou aceitar com normalidade essa troca, é ceder, mesmo que de forma inconsciente, aos preceitos ideológicos impostos.
O desenvolvimento capitalista possível no Brasil e nos países da América Latina e do Caribe é este existente, com suas precariedades, com seu alto grau de desemprego, com poucos direitos à imensa massa do povo, com seus salários rebaixados, e com seu Estado autocrático, que sobrevive pela corrupção sistêmica consentida pelos monopólios, eles mesmos corrompidos e corruptores. A maioria dos povos da América Latina e do Caribe vive mal, e essa é a condição proporcionada pelo capitalismo dependente e subordinado. Existe aqui uma classe crioula detentora dos meios de produção, a chamada burguesia nacional, embora os monopólios internacionais a cada dia abarquem uma parcela maior do nosso mercado produtor e consumidor. Ocorre, no entanto, que essa burguesia nativa sempre foi incapaz de estabelecer e lutar por um projeto nacional, realizando a revolução democrática e a reforma agrária, necessárias ao desenvolvimento independente. Nossa elite crioula sempre teve medo e asco do seu próprio povo, e por isso é aliada de primeira hora do imperialismo. Nossa classe dominante prefere viver sob as asas dos monopólios privados vindos dos países desenvolvidos e de seus estados nacionais imperialistas como garantidores da “segurança” universal dos investimentos daqueles, do que construir um projeto nacional onde o conjunto do seu povo possa participar de forma altiva da produção e desfrutar minimamente das riquezas produzidas. E os movimentos da América Latina e do Caribe que buscaram construir processos autônomos dentro do capitalismo foram, sem exceção, derrotados pelo imperialismo, com a participação direta e entusiasmada da reação interna, de uma oligarquia regional que tem pavor e asco do seu próprio povo, como escrito acima. Não tem mais como realizar a revolução nacional, democrática e agrária dentro do capitalismo, e este é um desconhecimento que tem custado caro aos nossos povos, pois, a resposta da reação interna e externa a estas tentativas são os golpes de Estado, a instituição de ditaduras, mais violentas ou mais disfarçadas, desde o início do século XX até os dias de hoje.
O grande erro da esquerda na América Latina foi acreditar na possibilidade de aliança com a burguesia crioula para a realização do desenvolvimento capitalista. Chegou-se a avaliar os países da América Latina como países pré-capitalistas e semi-feudais, de sorte que, se essa era a realidade econômico-social destes países, seria adequada a aliança com as burguesias nativas para a realização da revolução burguesa, condição elementar para a realização posterior da revolução socialista. Esse erro de avaliação, que levava necessariamente ao erro grave de estratégia, de tática e de formas de luta, cometido pela esquerda de praticamente todos os países da América Latina e do Caribe custou muito caro, ao povo e aos próprios partidos de esquerda, notadamente os comunistas. As burguesias nativas nunca quiseram essa aliança tática com o seu próprio povo, pelo contrário, fugiam e fogem disso, preferindo ficar na condição de sócio menor do desenvolvimento imperialista mundial. O conceito falso de globalização, tão badalado nas últimas décadas, cai como uma luva para nossa classe dominante, pois falar em projeto nacional tornou-se quase uma heresia, e nossa elite dominante tem medo disso. A democracia permitida é a democracia do mercado, do direito universal de exploração que os monopólios dos países imperialistas querem ter. A necessidade da reforma agrária para o desenvolvimento do capitalismo cedeu lugar ao desenvolvimento capitalista do campo, através do agro-negócio do capital monopolista, interno e externo, o que uniu nossos antigos e atrasados fazendeiros com a modernidade industrial e com o capital financeiro, tornando-os modernos defensores do atraso nacional, com métodos tão violentos quanto os de duzentos anos atrás.
Os povos latino-americanos e caribenhos viveram todas as agruras de terem sido parte importante do esforço para a acumulação primitiva que foi a base material para a propulsão do capitalismo moderno, e eles próprios não tiveram o direito de viver em um país de capitalismo desenvolvido. As classes dominantes desta parte do mundo sempre preferiram resguardar sua parte generosa da espoliação dos seus próprios povos, deixando aos verdadeiros produtores a fome, a miséria e a violência do Estado e dos capangas privados. O desenvolvimento capitalista possível nesta parte do mundo é esse que temos, e sonhar em construir nessa altura da história um desenvolvimento capitalista autônomo é fechar os olhos para a existência do imperialismo como um conjunto de estados nacionais fortes, sedutores e bem armados. Não existe salvação dentro do capitalismo. Até mesmo naqueles países onde o capitalismo foi desenvolvido de forma independente e vigorosa, a pobreza tem tomado o lugar das conquistas de direitos para as amplas massas. Nunca mais haverá o “estado de bem estar social” sonhado e em grande medida alcançado nos países europeus e na maior parte da América do Norte na segunda metade do século XX. O capitalismo deixou de ser uma força progressiva praticamente no seu nascedouro. Napoleão Bonaparte, seguindo a necessidade da burguesia européia do século XIX, matou o sonho da “igualdade, liberdade e fraternidade” da revolução jacobina. A cada dia mais, liberdade é um conceito adequado apenas para se referir à liberdade dos monopólios continuarem explorando e espoliando os povos; igualdade existe apenas como imposição do “direito comercial” dos monopólios, para continuarem produzindo, comprando e vendendo conforme as condições do mercado, que são impostas por eles mesmos; fraternidade é o conluio entre todos aqueles que dividem o direito de explorar e de constituir instituições para a manutenção da ordem econômica, social e política vigentes. Igualdade, liberdade e fraternidade substancial, como conceito de possível alcance para todos, não pode ser realizada no capitalismo. Quem quiser se enganar, ou enganar os outros, que fique imaginando o retorno do estado de bem estar social para o conjunto dos povos do mundo, coisa que nunca aconteceu, e já não poderá acontecer, pois até mesmo nos países centrais do capitalismo as condições de vida dos povos estão sendo abaladas a cada dia.
Não é mais possível realizar o estado de bem estar social para a maioria da população, nem mesmo nos países mais desenvolvidos do ponto de vista do capitalismo, porque o sistema não comporta mais essa realidade. Como dito acima, a fase progressista do capitalismo foi esgotada. Do ponto de vista político e filosófico, foi esgotada já no século XIX. Do ponto de vista econômico, esgotou-se no século XX. O capitalismo “nunca mais terá o corpinho que teve entre 1945 e 1970”, como já disse tantas vezes um camarada. Sistema definido pela produção e circulação de mercadorias, produzidas em dadas condições de produtividade, adotando forças produtivas determinadas, esgota-se conforme avança seu próprio mecanismo de propulsão.
As contradições internas do capitalismo não podem ser resolvidas dentro de seus próprios parâmetros, por mais que insistam seus defensores, mesmo que muitos possam acreditar com sinceridade no que dizem. A contradição entre produção e controle, onde muitos produzem e poucos controlam a produção, os objetivos da produção e os meios pelos quais se produz inviabiliza, por ela própria, a possibilidade de emancipação do gênero humano. A contradição entre produção e distribuição, onde a produção é coletiva, mas a apropriação é privada, afasta a maioria dos produtores da possibilidade de usufruírem das riquezas produzidas por eles próprios, gerando o afastamento do ser humano do produto do seu trabalho, podendo haver fome mesmo dentro de vastos campos plantados. A contradição entre produção e concentração, com os meios de produção cada vez mais concentrados nas mãos de poucos, gerando monopólios e matando a livre concorrência da qual tanto se orgulham os defensores do capitalismo. A contradição entre produção e taxa de lucro, onde a taxa de lucro é cada vez menor para o mesmo volume de mercadorias produzidas, o que vai inviabilizando as iniciativas empresariais menores em benefício das maiores, matando postos de trabalho e aniquilando a capacidade social de consumo. É preciso produzir um volume cada vez maior de mercadorias para garantir uma quantidade absoluta de lucro que supere a queda relativa da taxa de lucro, o que inviabiliza as pequenas iniciativas, tanto na indústria quanto no comércio.
Estes e outros mecanismos geram uma superprodução de mercadorias, que esbarra na impossibilidade de aquisição por parte da sociedade consumidora, esta mesmo em definhamento em virtude do desemprego e do achatamento dos salários. Estes mecanismos típicos do metabolismo capitalista geraram uma crise estrutural da qual não é mais possível sair pelas próprias regras do jogo capitalista. A cada esforço para a saída de uma crise se geram os mecanismos que produzem outra crise, ainda mais grave, no momento posterior. Assim, os soluços de crescimento, cada vez mais curtos e mais tímidos, são seguidos por crises mais agudas e mais largas. A crise, que é gerada pelo metabolismo próprio do capitalismo, tem como vítimas em primeiro lugar os proletários e as massas pobres, pois o estado vai perdendo as condições de investimento em políticas públicas de educação, saúde, segurança, saneamento, etc, até mesmo porque os monopólios impõem reduções nas taxas de impostos e melhores condições de exploração. Como os estados, no capitalismo, servem para preservar os interesses das classes economicamente dominantes, deixam de investir em políticas públicas para salvar os monopólios das quebradeiras, e encaminham medidas legislativas para a retirada de direitos trabalhistas e de garantias sociais. Isso significa um encurtamento continuado da capacidade do capitalismo absorver em seu mercado produtor uma parcela cada vez maior das imensas massas que só têm para a sobrevivência a própria força de trabalho, alijados que foram, ao longo de séculos, dos meios de produção. Parece evidente que aqueles que não têm acesso aos meios de produção acabam tendo como garantia de sobrevivência apenas a sua própria capacidade física e mental de trabalhar, naturalmente, para aqueles poucos que detém os meios de produção. A propriedade privada dos meios de produção é, portanto, uma realidade que precisa ser revista pela humanidade. E isso vale para o conjunto da humanidade e não apenas para os países latino-americanos.
Se o capitalismo não consegue sequer explorar do ponto de vista capitalista aqueles dos quais tomou os meios de produção, a humanidade não pode aceitar como natural a miséria e a morte de contingentes cada vez maior de pessoas! Se o capitalismo não pode garantir a vida nem mesmo da condição animal do ser humano, parece evidente que precisamos questionar a existência do capitalismo. Alguns defensores do capitalismo, e mesmo uma infinidade de seus críticos que não colocam a necessidade irrevogável de superá-lo, defendem formas de controle das regras do capitalismo. Sim, é possível controlar relativamente certas volúpias desse modo de produção, reduzindo a jornada de trabalho, impondo taxações e impostos, delimitando limites para a deterioração do meio ambiente. Isso os trabalhadores têm feito ao longo dos séculos, e é necessário continuarmos lutando por isso. No entanto, as lutas pela “distribuição de renda”, pela elevação dos salários, pela redução da jornada de trabalho, pela preservação das condições de dignidade dos trabalhadores e das massas empobrecidas, são lutas que não levam à superação dos problemas, na raiz dos problemas, pois são lutas mitigatórias, postergatórias. Por mais que seja importante e mesmo necessário lutar pelos avanços imediatos mesmo dentro do capitalismo, é preciso que a luta geral busque ir além do capitalismo, a ponto de destruí-lo enquanto forma de organização social da produção e da distribuição. Só a socialização dos meios de produção tornará possível ao ser humano como gênero e como civilização planejar de forma duradoura as condições para que todos tenham condições boas de vida. E isso não se faz com meia dúzia de doces palavras, nem com bravatas esquerdistas.
Se, por um lado, é um erro acreditar em revolução nacional, democrática e agrária em aliança com a burguesia, outro erro seria desleixar a necessidade de se construir os mecanismos necessários à construção de projetos nacionais autônomos, com democracia substancial, reforma agrária, reformas urbanas, enfim, a construção das bases materiais para que todos os compatriotas possam ter vida digna, “em abundância”. Essa tarefa precisa ser feita por um bloco de forças sociais e políticas que seja capaz de impor a vontade dos povos de baixo para cima, e com certeza terá a oposição sistemática e violenta das classes dominantes, internas e externas. Qualquer projeto de construção de direitos substanciais para todos os povos na América Latina e no Caribe precisa se colocar o desafio de derrotar as oligarquias internas, o que só pode ser feito mediante outro conceito de sociedade que não o capitalismo, o que significa ter que enfrentar o imperialismo também. Não são apenas doces palavras que alcançarão esse resultado. As massas populares, para alcançarem os direitos tão sonhados, precisam mergulhar no debate da transição socialista, ou da revolução socialista. Isso não vai acontecer apenas com a explicação didática dos conceitos do socialismo para um grupo, mesmo que grande, da população. Só pode ser alcançado pela luta direta das massas do povo, organizado para buscar seus direitos elementares: direito à alimentação, à moradia, salário digno, acesso à terra, à educação, à saúde, à segurança, ao meio ambiente respirável. Um projeto de sociedade que una todas essas lutas perceberá a necessidade de transformações mais profundas para que se chegue a resultados efetivos. Para isso é preciso desapropriar os latifúndios, terrenos urbanos, fazer saneamento básico, tornar públicas empresas estratégicas, controlar os recursos energéticos e naturais, os meios de transporte, os meios de informação e de comunicação. E não se chegará a isso sem a reação violenta dos hoje detentores do poder econômico e político, o que pressupõe a necessidade de estarmos preparados também para a defesa.
Não é verdade que nosso povo não se mobiliza para essas coisas. Quando as massas populares acreditam efetivamente em suas lideranças, e percebem nelas a vontade e a possibilidade real de realizar tais tarefas, a massa do povo se mobiliza. Isso tem acontecido em Nossa América, ao longo de séculos de lutas, infelizmente, quase sempre derrotadas com muita violência patrocinada pelas classes dominantes internas, sempre apoiadas pelo imperialismo. E disso precisamos falar, e começamos esse texto para chegar a esse ponto.
Os povos da América Latina e do Caribe sempre lutaram para a manutenção ou a conquista destes direitos, desde os primeiros anos da colonização portuguesa e espanhola. Infelizmente, na maior parte das vezes, lutaram sem clareza quanto ao caráter e o potencial do inimigo, sem estratégia adequada, com as formas e os instrumentos de luta que dispunham. Ainda hoje temos muita dificuldade em estabelecer uma estratégia, um programa e um conjunto de táticas que possam fazer avançar essa luta, que nunca cessou a não ser pelo peso da violência. Nossos povos têm lutado ao longo de 500 anos, e nada indica que querem parar de lutar. Apesar de todos os aparelhos de domesticação ideológica, da massificação alienante dos meios de comunicação de massa, nosso povo continua se levantando.
Fomos inseridos de forma subordinada no capitalismo, mediante a violência do Estado oligárquico autocrático e de outros sistemas de agressão. Sempre que os povos ameaçaram assumir o controle sobre os rumos das nossas sociedades, mesmo com governos de leve verniz democrático e de esquerda, o inimigo interno, ancorado no imperialismo, realizou os golpes de Estado mais escancarados e mais violentos. E sempre o fizeram em nome da democracia e em nome da liberdade, mas, claro, estão falando da liberdade dos monopólios continuarem nos explorando, e da democracia formal que representa quase nada para os reais interesses dos povos.
Na primeira metade do século XX, vários países da América Latina realizaram sua industrialização, mesmo que de forma subordinada aos interesses do imperialismo e lavada à frente em grande medida por seus monopólios. A proletarização de imensas massas possibilitou a construção de organizações populares fortes, mesmo que em muitos casos controladas pelo Estado, como é o caso do movimento sindical brasileiro. Esse impulso das bases da sociedade, ainda que tímido, fez erigir governos democráticos de aspecto desenvolvimentista, todos ou quase todos com ilusão de desenvolver seus países em acordo com a burguesia nacional. Todos eles foram derrubados por sangrentas ditaduras militares, que tinham como respaldo os monopólios privados, o latifúndio e o imperialismo. Em nome da democracia, para “livrar o povo do perigo vermelho”, cassaram, torturaram e assassinaram muitos milhares de lideranças populares e até mesmo personalidades democráticas e intelectuais nada ofensivos à ordem. Registre-se que esses golpes de Estado, mesmo sendo conduzidos por militares, tinham em sua iniciativa e em sua direção, apenas uma pequena casta de oficiais, ligada e formada pela ideologia da guerra fria, nos conceitos da “lei de segurança nacional”, na “Escola das Américas”, uma instituição militar imperialista que ensinava até mesmo métodos de tortura, plantada à força no Panamá, que hoje continua existindo, mas em território estadunidense. A maioria dos militares seguiu disciplinadamente seus chefes algozes e muito mal intencionados, e os militares identificados com os governos populares ou diretamente com o povo foram as primeiras vítimas da violência dos golpistas.
A partir da década de 1980, estando aniquilada a maior parte das organizações de esquerda, e mediante dificuldades de se manter a sustentação desses governos ditatoriais, o próprio imperialismo e as classes dominantes crioulas de Nossa América, passaram à etapa da transição, “lenta, gradual e segura”, na expressão do general presidente Ernesto Geisel, do Brasil. Mantiveram todos os aparatos de repressão, reciclando a ditadura com mecanismos de maiores direitos civis, restabelecendo a democracia formal. Depois de décadas de ditaduras pró-imperialistas (cinicamente feitas em nome da pátria), os monopólios internacionais tinham muito mais inserção na economia de todos os países, os direitos trabalhistas e as garantias sociais haviam diminuído. Com a derrocada do socialismo no Leste europeu e com o fim da União Soviética (URSS), o imperialismo busca se metamorfosear de “globalização”, determinando de forma arbitrária e sem nenhum embasamento objetivo o fim da luta de classes e o fim da história. O capitalismo pretendia mais mil anos de domínio sem qualquer contestação. A derrota histórica gigantesca que representou para o conjunto dos povos do mundo o fim do socialismo no Leste europeu, dispersou as organizações de esquerda, muitas deixaram mesmo de existir. A nova filosofia dominante enfraqueceu os organismos de representação dos proletários, os sindicatos, a ponto de estes passarem a ser questionados até por estudiosos do movimento dos trabalhadores, ou mesmo por antigos dirigentes operários. Foram mais duas ou três décadas de derrotas, de perda de direitos, de pulverização das organizações e de absoluta ausência de um bloco de forças sociais capaz de enfrentar as dificuldades deste (ou daquele?) tempo. Apenas Cuba e alguns movimentos insurgentes resistiram à década de 1990, de forma heróica, diga-se.
Faz dez anos que os povos voltam a se levantar em Nossa América, derrubando governos identificados com o empobrecimento das massas, constituindo novos governos para, em seguida e em vários casos, os derrubarem novamente quando estes se mostram incapazes de se tornarem independentes do conjunto de amarras a que historicamente estivemos sujeitos. Isso aconteceu no Equador, na Bolívia, na Argentina. Na Venezuela inicialmente, esse povo sofrido e desorganizado, com poucas lideranças existentes depois da violência dos golpes de Estado, identificou-se com um coronel do exército daquele país, apenas porque ele se opôs à violência dos militares contra o povo (Caracazo – 1989) e tentou um levante (1992) que pretendia derrubar um dos tantos governos identificado com a política de interesse dos monopólios, do latifúndio e do imperialismo. O levante de 1992 deu errado, mas seis anos depois o povo venezuelano elegeu com resultado esmagador o coronel que saíra da cadeia há pouco tempo. De lá para cá, o governo Chávez vem avançando pouco à pouco, com contradições internas, mas em consonância com a vontade majoritária do povo, e por isso já sobreviveu a um golpe, que durou apenas dois dias, em abril de 2002.
Depois disso, o povo da Bolívia elegeu um líder indígena para ser seu presidente, depois de ter derrubado dois governos de cunho conservador. No Equador, um economista pouco afeito à política, foi colocado pelo povo na presidência da república, depois que o povo elegeu um general que prometeu soberania nacional e popular, mas que ficou mesmo foi com os monopólios, sendo derrubado por uma avalanche de patriotas. Em quase todos os países da América Latina e do Caribe governos identificados com os setores populares foram eleitos, mesmo que muitos não tenham ou não estejam correspondendo com fidelidade aos anseios mais profundos das massas populares. Poucos países da ampla América Latina preservaram governos reacionários e integralmente identificados com o imperialismo, valendo citar a Colômbia e o México, neste último, no entanto, com fraude grosseira no processo eleitoral, o que levou a imensas contestações populares. Na América Central foram eleitos os sandinistas na Nicarágua e a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional em El Salvador, para citar apenas dois movimentos que comandaram a luta armada em seus países na década de 1980. A Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), proposta no final do século passado pelos Estados Unidos, que representaria a re-colonização do continente latino-americano e caribenho pelos EUA, foi derrotada por este movimento, e o governo Chávez da Venezuela, em conjunto com a revolução socialista de Cuba, propuseram a ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos da América), uma proposta de colaboração mútua entre os países, alheia aos interesses do imperialismo e da lógica nua e crua do mercado.
Honduras elegeu Manuel Zelaya, um fazendeiro do Partido Liberal, que já tem 118 anos de história, sendo um dos dois partidos tradicionais do país. Honduras também passou por ditaduras militares a partir de 1963, e foi na década de 1980 o suporte territorial para todos os interesses golpistas na América Central, sendo considerada por muitos, na época, “o maior porta-aviões do mundo”, num dizer jocoso, pois era em seu território que estava localizado a maior máquina de guerra, de tortura, de assassinatos da América Central, servindo de porto seguro para a reação nicaragüense, salvadorenha e güatemalteca (pelo menos), sempre amparada pela logística, pela inteligência e pelos instrutores vindos dos Estados Unidos. A direita de Honduras é muito conservadora e violenta, tendo ainda em seus aparatos gente que participou de corpo presente de inúmeros massacres e crimes contra os movimentos de esquerda no continente.
Manuel Zelaya, líder moderado de um partido composto de todas as classes sociais do país, resolveu aderir à ALBA, seguindo nisso os governos do Equador, da Nicarágua, da Bolívia e outros tantos países do Caribe, além, naturalmente, da Venezuela e de Cuba, proponentes da Aliança anti-imperialista. Além disso, no final de seu mandato, propôs a convocação de uma Assembléia Constituinte, que seria decidida, pelo sim ou pelo não, no mesmo dia em que deveria ser realizada a eleição para o novo presidente de Honduras.
E o golpe de 28 de junho de 2009 aconteceu por isso, porque o governo queria que o povo dissesse se quer ou não uma nova constituição. Se aprovada, a Assembléia Constituinte seria eleita e aconteceria a partir do ano que vem, já com Zelaya fora do governo. Então a direita realizou o golpe, como uma defesa preventiva, buscando evitar que o povo tomasse gosto pela participação na definição do futuro do país. Os motivos do golpe de Estado em Honduras estão tergiversados para a maioria dos brasileiros. Dizem que deram um golpe porque o governo Zelaya queria aprovar a sua reeleição, mas essa informação é falsa. Além do mais, o mecanismo da reeleição foi aprovado no Brasil de Fernando Henrique Cardoso (com “mensalão” para muitos congressistas), na Argentina de Carlos Menen e no Peru de Alberto Fugimori sem consulta ao povo, como todos de boa memória lembram.
Em razão desse golpe, realizado da forma mais criminosa possível, com o presidente legítimo sendo seqüestrado na “casa presidencial” e lavado para o aeroporto de San José da Costa Rica, o povo tem se levantado em Honduras, e isso os golpistas não esperavam. Os golpistas não esperavam também que o mundo inteiro condenaria o golpe, como tem acontecido de forma quase unânime, mesmo que com dubiedade por alguns governos, como o de Barak Obama, nos EUA, que manifestou-se contra o golpe, mas que os monopólios originários dos Estados Unidos sejam parte integrante do golpe.
Nas menos de sessenta horas em que estivemos em Tegucigalpa, a capital hondurenha, vimos acontecimentos extraordinários: parte do Congresso Nacional e todas as organizações populares de Honduras têm se levantado contra o golpe. Além do mais, uma massa de pessoas sem qualquer identificação política com os partidos ou com os movimentos sociais, de forma espontânea, não reconhecem o governo golpista, indo para as ruas manifestar sua indignação. Todos os dias ocorrem manifestações na capital e em outras cidades, como San Pedro Sula, a cidade industrial do país. Já houve mortes nos confrontos populares com as forças obedientes ao governo golpista, houve desaparecimento de militantes, pessoas que foram presas apareceram mortas, até mesmo à golpes de facas. Todos os dias, outras dezenas de pessoas são presas, e muitas têm sido agredidas fisicamente, inclusive parlamentares, como o deputado Marvin Ponce, do Partido da Unificação Democrática, agredido no dia 12 de agosto, tendo um dos braços e costelas quebrados.
O general Romeo Vasco Velásquez comandou as forças militares que seqüestraram o presidente legítimo e o abandonaram no aeroporto da capital de Costa Rica, assim como outros militares de alta patente participam e apóiam o golpe, colocando o exército a serviço do golpe e da repressão à resistência. Mas fala-se em descontentamento dentro do próprio oficialato do exército hondurenho, situação que não se pode constatar e não é de fácil identificação em virtude do fechamento dos militares e do respeito à hierarquia.
A Frente Nacional de Resistência Contra o Golpe de Estado, formada por parlamentares e por todos os movimentos sociais e sindicais do país, busca coordenar a resistência, mas ela ocorre com muito mais espontaneidade do que o potencial de coordenação da Frente, criando um ambiente de difícil análise e compreensão. No meio das manifestações, agentes do golpe espalham o terror, também para transferir a responsabilidade para a resistência, que busca se manter pacífica. Sim, os dirigentes da Frente de Resistência ao Golpe repetem insistentemente que as pessoas devem manter-se pacíficas, não aceitando provocações e nem fazendo provocações. Mas, como sempre ocorre, provocadores das próprias forças golpistas se infiltram nas manifestações para provocar o caos e criminalizar os manifestantes, que, quando presos, são acusados de terrorismo e sedição (alguma coisa como traição à pátria, ou tentativa de divisão do país). No entanto, não tem como negar: as pessoas do povo, grupos de jovens estudantes organizados, estão fora do controle da direção da Frente. Além disso, nos momentos em que algum policial ou algum militar usa da força para dispersar a manifestação, quase todas as pessoas responde no mesmo tom. Pudemos ver senhoras idosas, evangélicas, pichando paredes, como pudemos ver senhores de mais de cinqüenta anos de idade, visivelmente trabalhadores, arrancando bancos das praças públicas para arremessar contra as forças de contenção das manifestações. Os ânimos acirram-se, a divisão da sociedade fica cada vez mais evidente, e a violência generalizada acabou sendo o desfecho das manifestações que acompanhamos. Provocação do inimigo? Pode até ser, mas não tem como escapar da análise o fato de que a espontaneidade do movimento de resistência não está sob o controle perfeito da direção da Frente de Resistência. E, claro que isso não desabona os dirigentes, pois a maioria dos manifestantes nunca esteve organizada em qualquer partido e nem mesmo em qualquer sindicato. São as massas populares que vão para as ruas conforme sua vontade, e reagem com pedras às bombas de gás e aos tiros das forças de contenção. Honduras está em “transe”, uma força sagrada paira sobre a cabeça de evangélicos, umbandistas, das pessoas pobres em geral. A participação de muitos religiosos ocorre também porque o bispo chefe da igreja católica de Honduras é um dos golpistas, e vai realizar missas no pátio da “casa presidencial” ao lado do general e do presidente golpistas. Some-se a isso a participação da igreja católica na colonização violenta do país, e uma maioria do povo, que é maya nos traços e na cultura, acaba, mesmo de forma inconsciente, deixando extravasar cinco séculos de resignação convulsiva.
Não tem saída fácil para a crise política instalada em Honduras, pois o povo nas ruas não tem cedido a qualquer proposta que não seja o retorno do presidente legítimo, o único que aceitam que lhes governe. Até mesmo a eleição, prevista para o final do mês de novembro está comprometida, pois todos que resistem ao golpe afirmam que não existe poder legítimo no país para convocar a eleição. Querem Zelaya de volta, para que ele convoque a eleição e a consulta quanto à formação de uma Assembléia Constituinte. Evidente que os golpistas não aceitam tal saída, pois teriam que reconhecer e encarar seus erros e mesmo seus crimes. Nenhuma das saídas negociadas que estão sendo propostas por organismos internacionais, mesmo a Organização dos Estados Americanos (OEA), foi aceita pelo governo golpista, o que acirra todos os ânimos.
É impossível prever um desfecho imediato para esse conflito, e só mesmo uma ação decisiva e enérgica da OEA poderia devolver a paz social para o povo hondurenho. No entanto, não tenhamos ilusão, pois a OEA segue os interesses dos estados nacionais que a compõe, e estes estados são dirigidos pelos monopólios privados que têm interesses bastante concretos no golpe, ou, ainda por outro ângulo, têm medo do levantamento do povo hondurenho, que imporia, no mínimo, limites à sua atuação no país. Já alguns governos, como o de Lula, do Brasil, condenam o golpe, mas lhes falta força de ânimo para exigir que a OEA tome as medidas cabíveis. Naturalmente, se os interesses dos monopólios estivessem ameaçados, os organismos internacionais atuariam de forma diferente. Enquanto os governos e os organismos pretensamente multilaterais ficam no discurso, nem sempre muito claro, aumenta a violência dos golpistas contra a resistência, e o povo continua indo às ruas. Só mesmo um mar de sangue, um verdadeiro massacre social, poderia garantir aos golpistas a possibilidade de dizer que existe um “governo de fato” em Honduras. Naturalmente, essa é a pior saída possível, e o mundo inteiro precisa voltar seus olhos para impedir que tal massacre aconteça. É dever humanitário de todos os homens e mulheres, em qualquer parte do mundo, manifestar o mais veemente rechaço à violência ilegal e ilegítima contra um povo que só quer viver, trabalhar e poder decidir quem deve ser seu governo e como devem ser suas instituições.
Aqui no Brasil, precisamos enfrentar esse debate, de frente. Parece claro que o “esquecimento” do assunto por parte da grande mídia, que as manifestações de que não deveríamos gastar tempo com os assuntos de Honduras já que temos muitos problemas a resolver aqui, trazem um ideológico desprezo pela sorte dos povos irmãos. E o que fica evidente, até porque escrevem isso com quase todas as letras, é que, no fundo, acham legítimo um golpe que seja desferido contra um presidente eleito que venha caminhando na direção da democracia substancial, da soberania popular, seguindo uma tática continental criada por Hugo Chávez e Fidel Castro. Alguns formadores de opinião dos meios de comunicação, falam em “ditadura plebiscitária” para se referir ao método bolivariano de democracia, e é preciso que se faça essa discussão. Como podem falar em “ditadura plebiscitária” se o plebiscito é justamente a forma de um governo perguntar a seu povo o que pensa sobre determinado assunto? Como pode ser ditatorial a consulta ao povo? Acaso querem se referir à vontade da maioria como algo inaceitável? Que tipo de democratas são estes senhores, ou que tipo de confusão lhes oblitera a mente?
Voltando aos pensadores contratualistas, àqueles que estabeleceram os princípios filosóficos e teóricos da república burguesa, especialmente ao mais apreciado por eles mesmos, Jean Jacques Rousseau, podemos perceber claramente como os defensores da democracia formal, na prática um Estado autocrático, não aceitam a democracia substancial, a única que interessa à maioria dos integrantes de uma sociedade. Rosseau lamentava a dificuldade de uma democracia plena em sociedades de grande contingente humano, pois, nas grandes sociedades seria inviável a presença de todos os cidadãos em praça pública para tomar as decisões importantes. Remetia-se às cidades (polis) gregas dos períodos democráticos, onde os cidadãos (os não escravos, e do sexo masculino) decidiam em praça pública os destinos daquela sociedade, e lamentava que isso não seria possível em sociedades numerosas e de grandes extensões territoriais. Pois bem, para minimizar as dificuldades de uma sociedade de milhões de cidadãos e de grande extensão geográfica, os constituintes modernos criaram a figura institucional dos plebiscitos, dos referendos e das consultas ao povo, através do voto direto. O Brasil tem cerca de cento e dez milhões de eleitores (cidadãos e cidadãs com direito de votar e de ser votados), e todos eles poderiam decidir, em um único dia de votação, todas as questões importantes para o futuro da sociedade brasileira.
Desde 1988, quando o plebiscito foi instituído na atual Constituição brasileira, foram realizados dois plebiscitos institucionais: um para decidir sobre a forma de governo, em 1993, quando o povo disse que quer continuar sendo uma república presidencialista e constitucional; outro em outubro de 2005, para que o povo decidisse sobre o direito dos cidadãos terem ou não armas, e o povo decidiu que quer continuar tendo o direito de comprar e de portar arma, desde que com autorização das autoridades competentes. O plebiscito da forma de governo teve grande importância, e foi oportuna a sua realização. Quanto ao plebiscito do desarmamento, o tema não justifica um plebiscito, e o povo disse um não bastante qualificado ao governo que gasta dinheiro para fazer pergunta besta, e rechaçou a proposta governista de desarmar integralmente o povo. Evidente que seria mais importante e mais oportuno se o governo tivesse feito um plebiscito para perguntar se os brasileiros queriam ou não que fossem privatizadas a Vale do Rio Doce, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Embraer, o Usiminas, a Telebrás, a geração de energia elétrica, dentre tantas empresas importantes e estratégicas para o futuro do país que privatizaram sem perguntar nada ao povo. Poderiam fazer um plebiscito para perguntar ao povo se este quer que sejam ou não reestatizadas todas aquelas empresas, ou ainda se o povo quer ou não continuar pagando a dívida externa e interna, mesmo sabendo que ela já foi paga várias vezes. Alguém tem dúvida sobre qual seria a resposta popular a cada uma dessas propostas de plebiscito? Realizar tais plebiscitos seria um atentado à democracia, seria instituir uma “ditadura plebiscitária”? Do nosso ponto de vista, isso seria construir uma democracia substancial no lugar da democracia formal que temos. Mas não tenhamos dúvida de que muitos formadores de opinião dos monopólios da comunicação nacional acabariam chamando isso de ditadura.
Para os defensores das classes dominantes: o latifúndio, os monopólios e o imperialismo (que se incrusta nas empresas daqui, até mesmo nas estatais, e no próprio aparato de Estado, através de tecnocratas nascidos aqui, mas que falam como gringos), democracia é uma mera formalidade, sem substância material em termos de direitos sociais e econômicos para as grandes massas populares. Eles acham suficiente conceder às massas trabalhadoras o direito de ir às urnas a cada quatro anos escolher seus dirigentes executivos e seus parlamentares, em eleições que todos sabem que são viciadas, que o poder econômico das grandes empresas decide quase todos os eleitos. Não há e nem haverá legislação que possa impedir a supremacia do poder econômico nos processos eleitorais da democracia formal burguesa, exceto diante de grandes levantamentos populares e do despertar da consciência social de que devem rechaçar aqueles que não estão vinculados e comprometidos integralmente com as vontades majoritárias do povo. A república pretende ser o poder soberano do povo, para decidir quais devem ser os governantes, quais as instituições que devem existir e quais os mecanismos de democracia a vigorar. No entanto, o desenvolvimento econômico do capitalismo, de forma desigual e combinada em todo o mundo, fez corromper a instituição maior da república democrática, que é a vontade popular através do voto. Ninguém medianamente informado desconhece as inúmeras formas de burlar a vontade popular, arregimentando votos da massa desorganizada para políticos que, quando nos cargos, defendem, no essencial, os interesses dos grandes empresários, daqueles que financiaram suas campanhas. É muito raro um detentor de mandato no Brasil que se elege sem financiamento empresarial. É muito raro também o detentor de mandato, executivo ou legislativo, que atua com fidelidade plena às consignas que usou para angariar votos.
O que de melhor estes senhores que são contra a soberania popular tem em seu favor é o fato de acreditarem (é possível que muitos deles acreditem nisso) que a sociedade só pode se desenvolver sob a direção econômica dos monopólios, onde os trabalhadores também seriam beneficiados pelo crescimento dos negócios privados, pois assim ganhariam empregos, e teriam um salário compatível com o crescimento e a lucratividade dos negócios dos patrões. Por mais que seja uma generosidade nossa avaliar que eles estão sendo honestos quando argumentam isso, é preciso constatar e combater esta tese, pois ela trás no fundo o desprezo à capacidade humana de aprendizado e de superação, pois nega a possibilidade dos próprios trabalhadores estarem aptos (ou se tornarem aptos) ao gerenciamento da produção e da distribuição das riquezas socialmente produzidas. Sim, mesmo que sejam honestos ao afirmar que do “sucesso” do patrão depende a felicidade do trabalhador, eles estão com isso desprezando a capacidade e o potencial humanizador da classe que tudo produz, que tudo faz circular, que tudo realiza. Reside aqui um fundo filosófico aristocrático e elitista. Mesmo que fosse possível no capitalismo, economicamente, o pleno emprego e a garantia de amplos direitos aos trabalhadores e às camadas populares, ainda assim a forma privada de organizar a produção e a distribuição das riquezas seria inadequada à humanização do mundo, pois no mundo onde uns poucos controlam e a maioria é controlada, jamais haverá paz efetiva e sim opressão. Uma sociedade que se queira humana e humanizadora precisa colocar o conjunto do povo como protagonista dos seus destinos, mesmo que dirigentes estejam no comando dos governos para a realização das tarefas necessárias, pelo tempo que seja necessário. Os dirigentes dirigem, mas terão mais êxito e são de fato legítimos quando convocam as massas populares para tomar as decisões mais importantes. Ao contrário disso, a democracia é apenas uma formalidade, sendo o Estado a consolidação da autocracia existente no domínio das relações econômicas. Diante da impossibilidade objetiva dos monopólios privados do capitalismo darem sustentação econômica às necessidades sociais elementares, o Estado que está ao lado dos monopólios será, por imposição, um Estado opressor contra seu próprio povo, pois terá a tarefa de manter o controle social, alijando as organizações populares e dispersando pela violência ou pela desinformação (e contra-informação) o imenso contingente de pobres.
O levante dos povos na América Latina e do Caribe nos últimos dez anos está fazendo cair a máscara de muitos pressupostos democratas. Quando alvejam governos populares como os de Hugo Chávez e Evo Morales estão esbravejando contra a democracia substancial, deixando claro que só aceitam a democracia como mera formalidade, conveniência para manter a ordem geral das coisas em seu lugar, com os pobres ficando mais pobres e um conjunto sempre menor de ricos ficando a cada dia mais ricos, mesmo diante das crises econômicas que eles próprios provocam, pois que são eles os defensores do capitalismo como forma de produção e de distribuição das riquezas socialmente produzidas. Alguns formadores de opinião da mídia brasileira demonstraram espanto ao perceber que o governo de Evo Morales ia cumprir a promessa de campanha de estatizar os hidrocarbonetos (petróleo e gás mineral). A notícia chegou mais ou menos assim: “Senhores, o governo boliviano de Evo Morales vai cumprir suas promessas de campanha, e estatizar a exploração e distribuição dos hidrocarbonetos!!!” Por que tanto espanto, se estava apenas cumprindo compromissos de campanha? Ora, o espanto é porque tais meios de comunicação estão acostumados com governos que se elegem prometendo uma coisa e depois fazem outra. No Brasil, e é de se julgar que em qualquer país da América Latina, nenhum governante foi eleito garantindo que privatizaria tudo que pudesse, ou tudo que os monopólios privados, quase todos de origem imperialista, estivessem interessados em abocanhar. Mas realizaram isso, traindo o povo, mesmo quando esse, iludido pelos meios de comunicação, ficou inerte.
Agora o povo desperta da inércia, e se põe a marchar, uns mais depressa, outros ainda devagar, ou sem sequer perceber que precisa marchar. Na Venezuela, na Bolívia, no Equador, em El Salvador, na Nicarágua o povo marcha com mais velocidade. No Brasil, na Argentina, no Chile, no Paraguai e em tantos outros países, o povo marcha lentamente, também porque os governos controlam a velocidade da marcha, com políticas compensatórias e com falsas esperanças no amanhã. Em Honduras, a marcha seguia lenta, mas a direita rancorosa, respaldada pelos monopólios privados dos gringos, resolveu dar um golpe preventivo, antes que o povo acostumasse com a idéia (legítima e necessária) de decidir sobre os rumos econômicos, sociais e políticos do país. Essa direita errou os cálculos porque as massas já haviam começado a gostar da idéia de ajudar a decidir, e o golpe fez o povo ver, de um estalo, que os golpistas têm um único objetivo: deter sua marcha até a soberania popular, na direção das mudanças necessárias para que o povo pobre possa ter acesso à terra, ao emprego, à educação, à saúde e à sua própria cultura. E o povo está indo às ruas, mesmo diante da mais atroz repressão.
Por tudo que foi dito acima, o golpe em Honduras não é apenas contra o povo hondurenho, e sim contra todos os povos da América Latina e do Caribe. Se esse golpe se consolidar, Honduras voltará a ser plataforma de lançamento dos ataques que o imperialismo pretende engendrar contra os processos de emancipação dos povos vizinhos, de El Salvador, da Nicarágua e da Guatemala. Na América do Sul, o imperialismo tem sua plataforma, na Colômbia do oligarca Álvaro Uribe, e tem intensificado o poderio de sua máquina de morte, abrindo mais bases militares naquele país e gerenciando as próprias bases militares do governo colombiano. A esperança dos povos da América Latina e do Caribe seria o final do governo Uribe, quiçá com uma vitória da insurgência, ou por via eleitoral, ou ainda uma combinação das duas coisas, para o estabelecimento naquele país andino de um governo popular identificado com as mudanças democráticas. Para evitar isso, Álvaro Uribe fala na vontade de concorrer pela terceira vez à presidência da república, e os meios de comunicação calam sobre isso. Aproveitando o final de feira do governo Uribe (se ele não conseguir a reeleição), os Estados Unidos vão fazer acordos com o atual governo, acordos em nome do Estado colombiano, o que dificultará a reversão disso mesmo num governo diferente nos anos vindouros. Mas consideram pouco: querem seus coturnos na América do Sul, e agora produzem esse golpe em Honduras, para ter lá também o seu quartel para o esmagamento dos povos da região.
E a grande mídia não cessa de atacar Hugo Chávez, como se houvesse uma preparação para a guerra por iniciativa do governo venezuelano e não que as iniciativas deste sejam uma resposta defensiva às ameaças vindas do imperialismo estadunidense para socorrer as oligarquias atrasadas da América Latina e do Caribe e para garantir aqui, mesmo que pela força, os interesses dos monopólios de origem norte-americana. E por que os meios de comunicação agem assim? O fazem porque também são monopólios privados, também têm interesses de classe a preservar. A rede Globo (maior conglomerado de televisão, rádio e jornais do Brasil), por exemplo, foi criada em 1965, um ano depois do golpe de Estado brasileiro, com recursos vindos dos Estados Unidos, o que era proibido pela legislação brasileira, e isso é de conhecimento público há décadas. Mas, independente disso, a maior parte dos meios de comunicação no Brasil e nos outros países do continente são monopólios privados, pertencentes a poucas famílias. Portanto, essa mídia é golpista e que ninguém se engane com seu discurso pretensamente democrático e livre.
Os meios de comunicação têm sido usados para satanizar os movimentos populares autônomos e suas lideranças. Tem servido para satanizar também os governos que efetivamente se colocam ao lado das mudanças estruturais necessárias. Falar em socialismo para essa mídia, a menos que seja apenas um charme para os salões nobres das elites nacionais, é uma ofensa. Eles não querem ouvir falar em socialismo, a não ser que seja para criticar, para mentir, para espalhar fantasmas que nunca existiram. Mas, se o povo se levantar e colocar na ordem do dia a exigência de seus direitos, se o povo impor a democracia substancial no lugar dessa democracia formal que eles querem, os meios de comunicação atacam de forma vil, mentirosa e ardilosa, mesmo que ninguém pronuncie uma única vez a palavra socialismo. Então, no essencial, eles são contra a realização dos direitos elementares dos povos, já que estes direitos são incompatíveis com a manutenção da ordem econômica, social e política que interessa a manutenção e ampliação dos lucros dos monopólios locais, do latifúndio e dos monopólios imperialistas.
Atacam os lideres legítimos do povo para que a grande massa que só se informa pelos grandes meios de comunicação fique inerte na sua pobreza, e não participe dos movimentos sociais e políticos que propõe as mudanças necessárias para a construção da dignidade humana. Foi assim que mantiveram por décadas e séculos a maioria do povo esperando apenas a próxima eleição para então tentar mudar sua realidade de fome e miséria, e a mudança não veio porque os governos constituídos pelos processos eleitorais, na maioria das vezes, foram meros seguidores das políticas de interesse dos monopólios, do latifúndio e do imperialismo. E, sendo dessa forma, os processos eleitorais são sempre bem saudados com entusiasmo pelas forças de direita e pelos meios de comunicação de massa. No entanto, quando os povos se levantam e elegem governos comprometidos de fato com mudanças, lá vêm todos os gorilas, mais ou menos disfarçados de democratas, e impõe seus golpes de Estado. Foi por isso que da década de 1950 à década de 1980 todos os países do América Latina e do Caribe passaram por golpes de Estado, a exceção do México, com sua “ditadura perfeita”, porque realizou todas as políticas de direita através de governos eleitos.
O massacre físico e ideológico das forças populares autônomas ao largo de três décadas, sob governos ditatoriais permitiu a “abertura” democrática a partir dos anos 80 do século passado, uma reciclagem da ditadura, com manutenção das instituições de espionagem, controle social e contenção das forças populares. Os monopólios, o latifúndio e o imperialismo passaram a administrar seus interesses por novos meios, permitindo ao povo um voto a cada quatro anos. Mais duas décadas de empobrecimento, de privatizações, de retirada de direitos, e o povo começa a marchar para exigir mudanças substanciais. E lá vêm os golpistas, a satanizar os movimentos populares e seus líderes, promovendo um massacre ideológico sem direito de resposta. Os governos dos países que têm conseguido avançar são caluniados de forma maldosa, para que os povos dos países vizinhos não prestem atenção nos avanços que tais povos estão alcançando.
O governo hondurenho de Manuel Zelaya não é um governo identificado com as lutas populares ou com partidos de esquerda. Não tinha qualquer motivo para o golpe, não tivesse Zelaya inscrito Honduras na ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos da América) e decidido oportunizar ao povo o direito de decidir sobre a convocação ou não de uma Assembléia Constituinte. Os golpistas erraram os cálculos, inclusive porque não satanizaram Zelaya antes do golpe, de forma que o povo que estava na expectativa acabou percebendo que o golpe não era contra Zelaya e sim contra ele próprio, para que ele, o povo, não pudesse decidir se quer ou não uma Assembléia Constituinte. Depois do golpe os meios de direita e todos os agentes que conseguem arregimentar, mesmo que mediante pagamento, estão tratando de satanizar a Zelaya, mas agora é tarde, porque o povo saiu antes, e está em maior número. Os meios de comunicação golpistas estão a noticiar o financiamento da resistência pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP), que teria distribuído três milhões de dólares para a resistência hondurenha. Sem sombra de dúvida essa é uma tripla calúnia, pois a FARC-EP é uma insurgência legítima do povo colombiano, e não tem laços com o tráfico de entorpecentes, ao contrário do presidente colombiano Álvaro Urube, que quando parlamentar era contrário à extradição de traficantes internacionais para os Estados Unidos, e até mesmo teve relação de amizade com Pablo Escobar, o chefe supremo do cartel de Medellín, de quem comprou, ou de quem ganhou, uma avião. É calúnia pela segunda vez porque hoje as FARC-EP estão circunscritas às montanhas, sobretudo depois da morte de seus maiores dirigentes: Manuel Marulanda Vélez e Raul Reyes, de sorte que não teria a menor possibilidade de realizar o financiamento de qualquer coisa fora da montanha. E é calúnia pela terceira vez porque a resistência hondurenha sobrevive com grandes dificuldades, sem todo esse potencial financeiro que alegam. Seus meios de comunicação são simples tablóides em preto e branco e nem mesmo possuem bons carros de som nas ruas. A propaganda da resistência hondurenha é feita por este pequeno jornal de quatro páginas, por panfletos fotocopiados e por pichações nos muros das cidades, contra modernos meios de comunicação de massa, incluindo as maiores redes de televisão.
Espalham calúnias e mentiras as mais desavergonhadas contra Manuel Zelaya, Hugo Chávez, Evo Morales, Rafael Correa, Fidel Castro, assim como o fizeram no passado contra Che Guevara, José Martí, Solano Lopes, João Goulart, Zumbi dos Palamares, e tantos outros. Todo movimento social ou político e suas lideranças que contestam esta ordem de fome, miséria e opressão provocada pelo domínio dos monopólios, do latifúndio e do imperialismo, é tratada pelos meios de comunicação de massa e pelos aparatos do Estado como inimigos, e têm sido eficientes em aterrorizar as amplas massas desorganizadas da sociedade, para que não se aproximem e nem queiram conhecer estes movimentos e seus líderes. Como os líderes de direita não tem a menor intenção de estar ao lado do povo, mesmo porque a convivência seria impossível, a maior parte do povo, mesmo dos trabalhadores assalariados, fica inerte, se informando apenas pelos meios de comunicação, e formando uma consciência parcial e torta acerca da sua própria situação. É assim que a classe economicamente dominante mantém seus poderes, controlando os aparatos do Estado autocrático por meio da corrupção sistêmica, já considerada normal e até mesmo legalizada em muitos aspectos, como o financiamento privado para as campanhas eleitorais. As imensas camadas pobres da população ficam órfãs de movimentos e líderes nos quais se referenciar para desenvolver as lutas necessárias à sua própria emancipação, e isso dificulta a construção de movimentos vigorosos e organizados para os enfrentamentos necessários numa sociedade de classes. Por essa razão, os levantes dos povos da América Latina e do Caribe nos últimos dez anos têm surgido em circunstâncias inesperadas e muitas vezes sem uma direção política conseqüente que possa conduzir à vitórias. Os líderes e movimentos que não mataram pela violência aniquilam pela calúnia, produzindo essa ausência de reconhecimento de qualquer referência.
A constatação que já era possível antes, mas que bateu em nossa cara com toda força depois da viagem a Honduras é que os inimigos do povo não vão vencer outra vez em nosso continente, pois já não resolve satanizar alguns movimentos e seus líderes, pois o povo se levanta mesmo de forma espontânea, e exige que os governos realizem as mudanças estruturais necessárias. Não foi Chávez quem criou a revolução bolivariana na Venezuela, e sim o povo que descobriu um líder que não o trairia e colocou esse líder na presidência da república para fazer a revolução bolivariana. Não foi Rafael Correa que descobriu e criou a vontade do povo equatoriano em ter mudanças, em mudar a constituição para realizar o poder popular, foi o povo equatoriano que derrubou os governos que o estavam traindo, e descobriu em Rafael Correa o líder capaz de conduzir um processo de mudança. Não foi o indígena Evo Morales quem fez os levantes populares da massa popular e indígena da Bolívia, foram os indígenas e as gentes do povo boliviano que realizaram as imensas mobilizações, derrubaram dois governos traidores e elegeram o indígena Evo Morales para realizar as mudanças que queriam. Assim, não adianta os meios de comunicação e os demais monopólios, com todo seu aparato de difusão de mentiras e de violência, continuar satanizando os movimentos e seus líderes, pois a vontade por mudança está na cabeça do povo, e vem direto do seu organismo insuficientemente alimentado, da sua angústia historicamente construída por gerações de lutadores e de famintos. Se querem satanizar, caluniar, perseguir, condenar ou mesmo matar alguém, terão que fazer isso contra o povo, e em grande número. E é isso que estão fazendo em Honduras. Mas, mesmo que os golpistas consigam permanecer no governo e realizar os processos eleitorais para dar legitimidade à política que pretendem instituir, a direita hondurenha e continental não terá vitória duradoura em Honduras, pois o povo começou a caminhar, e Honduras não será mais a mesma depois desse golpe, até mesmo porque um dos maiores partidos do país está dividido em várias partes, tendo liberais na resistência, no palácio golpista e ainda aqueles que dizem que não têm nada com isso.
O que está muito claro é que o povo quer lutar, e que luta sempre que surge um movimento ou um líder que lhe inspire confiança. A capacidade de superação de um povo, seu espírito de sacrifício, está para além do compreensível. Está para além do medo de morrer ou do receio de matar. Os povos da América Latina e do Caribe estão aptos para vencer ou para morrer, assim como já morreram com Zumbi dos Palmares, com Lempira, com Sandino, com Chê Guevara, com Luiz Carlos Prestes, com Solano Lopes, com Artigas, com Bolívar, com Martí e com todos os líderes que não traíram. O povo latino-americano e caribenho está apto também a lutar e a vencer, assim como venceram com Fidel Castro em Cuba, e como tem lutado e vencido com Hugo Chávez na Venezuela. É preciso estruturar os instrumentos organizativos, difundir conhecimento, seriedade e demonstrar capacidade de luta. O povo se levantará sempre, forjando novos líderes.
Se é lamentável para o conjunto da Nossa América a existência de um golpe em Honduras, é também um ensinamento para que saibamos sempre com mais clareza que todos os processos de mudanças precisam de instrumentos organizativos para suportar os golpes adversos, que com certeza sempre são desferidos pelo inimigo, da forma mais sórdida e traiçoeira. Se ressuscitam velhos fantasmas, que muitos consideravam enterrados, temos que construir os mecanismos para exorcizá-los, para todo o sempre. É preciso que todos os defensores da democracia, da soberania popular mais legítima, manifestem seu rechaço mais veemente ao golpe em Honduras, pois a consolidação daquele seria uma permissão para que façam isso em outros países, inclusive no nosso. Mas, para além disso, temos que estar preparados em todas as partes do nosso vasto continente para enfrentar os golpes que buscarão efetuar contra todos nós na medida em que nossas forças forem se tornando mais ameaçadoras contra a dominação dos monopólios, do latifúndio e do imperialismo.
É preciso que os lutadores populares, que os movimentos sociais autônomos, que os partidos de esquerda reflitamos com realismo sobre as mudanças que estão em curso na América Latina e no Caribe, e que tomemos medidas para que as mudanças sejam aprofundadas, com mais democracia substancial, com mais poder popular, com mais coragem de ousar e com menos medo de caminhar ao socialismo. Formar no nosso país um bloco de forças sociais anti-monopolista, anti-imperialista e anti-latifundiário é condição para interligar uma estratégia socialista com os anseios mais profundos do povo pobre e trabalhador por mudanças imediatas e de médio prazos. Não tem como escapar da necessidade de articulação de um movimento internacionalista na América Latina e no Caribe, unindo em um corpo programático, político e orgânico, todas as lutas populares em nosso continente, com participação das forças que já estão no governo e com aquelas que continuam a batalha apenas nas ruas. Este movimento precisa estar articulado em todo o continente, preservando a autonomia de cada povo para definir seus ritmos e suas formas, mas, definitivamente, temos, todos, que buscar os mecanismos de defesa preventiva contra os golpes, fortalecendo a consciência das massas e dos militantes quanto a esta necessidade. Se hoje nos atacam com detenções, multas, interditos, bombas de gás e tiros de borracha porque fizemos uma greve, ou porque numa manifestação se interrompe por algumas horas uma rodovia, amanhã, quando nossas forças forem capazes de façanhas mais importantes, nos atacarão com munição letal (como já tem ocorrido), com extradição, com torturas, com largos anos de prisão. Se não estivermos minimamente organizados, e preparados em todos os sentidos contra estes golpes, não estaremos à altura da luta que nosso povo é capaz de realizar.
São José – Santa Catarina, 23 de agosto de 2009.
Foto: Marcelo Buzetto
Servimos como base para a acumulação primitiva do capital comercial no período do mercantilismo clássico, mandando ao centro econômico e político do mundo pau Brasil, ouro, prata, cana de açúcar, algodão, madeira, borracha, café. No século XVIII, o impulso capitalista, com as novas formas de produção, a maquinaria, a grande indústria européia foi possível pelas matérias primas enviadas daqui e de outras partes do mundo. O suor de indígenas e de africanos feitos escravos serviu para a acumulação primitiva de capital, assim como outros continentes “ajudaram” na tarefa histórica de propiciar aos europeus a modernização das forças produtivas, os saltos qualitativos na ciência e na técnica, conjunto que possibilitou o surgimento do capitalismo propriamente dito, da exploração de mais valia na forma moderna dos últimos 250 anos.
A América do Norte, a exceção do México, mesmo tendo sido colonizada no mesmo período histórico, teve a oportunidade de dar o grande salto à modernização produtiva, através de uma revolução agrária (divisão da terra), de uma revolução nacional e de uma revolução democrática. Os Estados Unidos aboliu a escravidão, distribuiu as terras e tornou-se independente da Inglaterra por um processo democrático de luta popular, estabelecendo dessa forma as condições para o desenvolvimento pleno de suas forças produtivas e para a instituição de um Estado Nacional soberano. Romperam, pela força das armas, as amarras que a velha Europa queria continuar lhes impondo, e puderam se desenvolver plenamente do ponto de vista capitalista por que realizaram esse processo de emancipação nacional. É comum em Nossa América ser aceita a tese elitista de que nós não nos desenvolvemos porque nosso povo é preguiçoso, porque fomos colonizados por “bandidos” dos quais a velha Europa se livrou, degredando aqui. Esta tese é preconceituosa e cumpre muito bem o objetivo de dissimular os reais motivos do nosso atraso histórico. Também para os Estados Unidos foram degredados os, à época, indesejáveis defensores da “reforma protestante”, e isso não interferiu negativamente no desenvolvimento daquele povo, talvez pelo contrário. O que impediu nosso desenvolvimento econômico, social e político foi termos nos permitido ficar, sempre, obedecendo ordens da Europa, primeiro da Espanha e de Portugal e, depois, da mesma Inglaterra que colonizava os Estados. A ausência de um processo autônomo de independência, que fosse mais que uma formalidade na superestrutura política e representasse de fato uma autonomia econômica e social, além da autonomia política, esse é o motivo do nosso atraso. As mudanças aqui, foram realizadas pelas mesmas classes dominantes internas, quase sempre com o aval da dominação externa. Mesmo os processos autônomos, como os levados à frente por Bolívar na região andina, por José Martí em Cuba e mesmo a própria revolução mexicana do começo do século XX, com o passar do tempo foram descaracterizados, ficando o poder econômico e político novamente na mão das oligarquias internas que aceitaram com docilidade e subserviência a condição de sócio menor dos interesses externos, da Europa inicialmente, e dos Estados Unidos à partir do período entre as duas guerras mundiais.
A América Latina e o Caribe desenvolveram-se de forma não clássica. Os povos que o fizeram, como os mexicanos, os haitianos, os cubanos, os andinos, os paraguaios e os uruguaios tiveram reveses com o passar das décadas e séculos, permanecendo nesse período histórico dos últimos duzentos anos como os demais países da América Latina e do Caribe. O Brasil pode ser um bom exemplo de como foi diferente nosso processo de inserção no mundo moderno: não tivemos revolução nacional, nem revolução democrática e nem reforma agrária. Não tivemos nem transformações substanciais das condições de desenvolvimento, quanto mais uma revolução burguesa clássica. As mudanças, no Brasil e na maioria dos países vizinhos, foram feitas através do acordo das elites, desde a declaração de independência, passando pela instituição da república, até a última transição “democrática” da década de 1980. Passamos por estes duzentos anos de história fazendo a reciclagem das velhas formas, sem salto qualitativo de alguma expressão popular, nacional ou democrática. No Brasil e no vasto sub-continente as classes dominantes souberam, pela violência contra seus compatriotas e pela aceitação das ingerências externas, manterem-se dominando na economia e na política, camuflando-se de republicanas mesmo quando traziam todos os traços ideológicos e todas as chibatas da oligarquia monárquica. Se a nobreza da Inglaterra e de outros países europeus aprendeu a conviver com a modernidade capitalista e com suas instituições republicanas e democráticas, na América Latina os pseudo republicanos (os mestiços da classe dominante) conseguiram realizar a passagem para o capitalismo sem alterar a essência oligárquica das instituições, sem realizar a revolução democrática e nacional e sem permitir a reforma agrária. E isso nos segurou no atraso em que vivemos. Nossa classe dominante preferiu a proteção dos países mais fortes do ponto de vista capitalista do que o risco de conclamar seu próprio povo para as transformações estruturais necessárias ao desenvolvimento pleno, mesmo que do próprio capitalismo. A nobreza italiana (e de outros países europeus de desenvolvimento econômico tardio) soube “entregar os anéis para não perder os dedos” (frase emblemática do livro e do filme “O Leopardo”). A nossa oligarquia não entregou nem os anéis, e preservou os dedos protegendo-se junto aos braços aconchegantes e cheios de segundas intenções dos países mais desenvolvidos, como a Inglaterra e, já no século XX, os Estados Unidos. Para exemplificar, nossa classe dominante, acatando todas as exigências da Inglaterra, deixou de desenvolver a indústria em nosso país até o final do século XIX, e ainda fez o trabalho sujo, junto com a Argentina e o Uruguai, de massacrar o povo paraguaio (1865-75, no que convencionou-se chamar “Guerra do Paraguai”), que desenvolvia sua indústria, mesmo à revelia da Inglaterra. A transição pelo alto fica clara até mesmo nos episódios mais recentes: José Sarney era destacado dirigente da ARENA golpista de 1964, mas filiou-se ao PMDB para ser vice-presidente na chapa de Tancredo Neves, em 1984. Este morreu, e a ARENA continuou governando o país. Agora, Sarney é defensor do governo Lula, e a recíproca é verdadeira. Continuam os acertos por cima, até mesmo quando lideranças populares são alçadas a cargos de dirigentes. Também é comum a cooptação de lideranças populares, e essa talvez seja a maldição que mais congela a vontade de lutar do nosso povo: ao longo das décadas e dos séculos, a maior parte dos líderes populares acabam servindo para a execução das tarefas exigidas pelas classes dominantes internas e pelo imperialismo. O líder popular que não aceita trocar de lado, de método e de programa, será perseguido e satanizado até desaparecer. Quando a classe dominante não consegue nem cooptar e nem calar pela força ou por meio diverso uma liderança popular, está-se diante de um processo de avanço da luta, que pode ser maior ou menor, dependendo das condições objetivas e subjetivas possíveis.
Engana-se ou mente quem fala da possibilidade dos países latino-americanos e caribenhos desenvolverem-se a ponto de terem um dia uma modernização capitalista tão abrangente quanto o foi o capitalismo na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá. Agora virou moda chamar os países que estão na condição do Brasil e “países emergentes”, e isso é uma falsificação da verdade, pois o que continuamos sendo é subdesenvolvidos, subordinados e dependentes aos países centrais do sistema capitalista. Pode-se com honestidade imaginar que o Brasil e países na mesma situação venham a desenvolver-se e ser um dia mais uma potência mundial. Esse é um conceito errado, pois só pode haver “potência mundial” com relação aos demais países do mundo. Para que o Brasil seja uma potência mundial nos conceitos do capitalismo, é preciso que muitos outros países sejam subordinados ao Brasil, do ponto de vista econômico e político, e isso não aconteceria mesmo que o Brasil viesse de fato a realizar a sua revolução nacional, democrática e agrária, porque as potências mundiais já existentes tratam de manter os espaços que têm, e avançar sempre mais. Esse conflito entre potências é que provoca as guerras mais intensas, como as duas grandes guerras do século XX. Outras ainda podem ser levadas à cabo, pois cada Estado Nacional dos países desenvolvidos existe para defender os interesses econômicos e comerciais das suas grandes empresas, dos seus monopólios. A General Motors, a Coca Cola, a Ford são monopólios cuja matriz fica nos Estados Unidos. Tente alguém provocar algum prejuízo a estas empresas para ver se o exército americano não desce, no caso de não haver outra forma de resolver o impasse.
É por isso que estamos afirmando a impossibilidade de países hoje subdesenvolvidos (ou em desenvolvimento, ou emergentes, ou qualquer eufemismo que queiram usar) saírem desta situação e assumirem também o papel de “potência mundial”, um conceito inadequado para qualquer pessoa que defenda a dignidade universal do ser humano. Estamos, há mais de cem anos, em tempos de imperialismo, cujo conceito é: fusão do capital industrial com o capital financeiro, e podemos agregar também, para nossos dias e para nosso continente, fusão do capital industrial com o capital financeiro e com o capital agrário. Isso impede qualquer desenvolvimento independente de qualquer país do mundo por dentro da lógica do capitalismo. Aqui teríamos que dedicar algum tempo para a leitura desses conceitos, e de como eles se desenvolveram ao longo dos dois últimos séculos. Sigamos em frente, no entanto, afirmando que o capitalismo é um sistema mundial interdependente, onde os mais desenvolvidos massacram os menos desenvolvidos. A economia capitalista sempre foi globalizada, de forma “desigual e combinada”, entre as diversas realidades sócio-econômicas desde antes de nascer com sua forma típica dos últimos 250 anos, e não tem novidade nesse aspecto. O conceito de “globalização” que pretendem impor atualmente é falso, pois ela existe há séculos como forma de opressão de dominadores sobre dominados, e jamais como forma de respeito mútuo. E assim seguirá sendo enquanto houver capitalismo, pois essa forma de exploração é típica e inexorável no capitalismo. Não pode haver capitalismo sem exploração e sem opressão das economias mais desenvolvidas sobre as economias mais frágeis, e esta condição foi definida historicamente e não pode ser mudada, não nas condições aceitas pelo imperialismo e pelas classes dominantes internamente a cada país da Nossa América. O conceito de “globalização” é uma manobra ideológica para esconder uma realidade objetiva, de opressão e exploração imperialista. Trocar o nome dos fenômenos, ou aceitar com normalidade essa troca, é ceder, mesmo que de forma inconsciente, aos preceitos ideológicos impostos.
A Ilusão da Revolução Nacional com as Burguesias Nativas
O desenvolvimento capitalista possível no Brasil e nos países da América Latina e do Caribe é este existente, com suas precariedades, com seu alto grau de desemprego, com poucos direitos à imensa massa do povo, com seus salários rebaixados, e com seu Estado autocrático, que sobrevive pela corrupção sistêmica consentida pelos monopólios, eles mesmos corrompidos e corruptores. A maioria dos povos da América Latina e do Caribe vive mal, e essa é a condição proporcionada pelo capitalismo dependente e subordinado. Existe aqui uma classe crioula detentora dos meios de produção, a chamada burguesia nacional, embora os monopólios internacionais a cada dia abarquem uma parcela maior do nosso mercado produtor e consumidor. Ocorre, no entanto, que essa burguesia nativa sempre foi incapaz de estabelecer e lutar por um projeto nacional, realizando a revolução democrática e a reforma agrária, necessárias ao desenvolvimento independente. Nossa elite crioula sempre teve medo e asco do seu próprio povo, e por isso é aliada de primeira hora do imperialismo. Nossa classe dominante prefere viver sob as asas dos monopólios privados vindos dos países desenvolvidos e de seus estados nacionais imperialistas como garantidores da “segurança” universal dos investimentos daqueles, do que construir um projeto nacional onde o conjunto do seu povo possa participar de forma altiva da produção e desfrutar minimamente das riquezas produzidas. E os movimentos da América Latina e do Caribe que buscaram construir processos autônomos dentro do capitalismo foram, sem exceção, derrotados pelo imperialismo, com a participação direta e entusiasmada da reação interna, de uma oligarquia regional que tem pavor e asco do seu próprio povo, como escrito acima. Não tem mais como realizar a revolução nacional, democrática e agrária dentro do capitalismo, e este é um desconhecimento que tem custado caro aos nossos povos, pois, a resposta da reação interna e externa a estas tentativas são os golpes de Estado, a instituição de ditaduras, mais violentas ou mais disfarçadas, desde o início do século XX até os dias de hoje.
O grande erro da esquerda na América Latina foi acreditar na possibilidade de aliança com a burguesia crioula para a realização do desenvolvimento capitalista. Chegou-se a avaliar os países da América Latina como países pré-capitalistas e semi-feudais, de sorte que, se essa era a realidade econômico-social destes países, seria adequada a aliança com as burguesias nativas para a realização da revolução burguesa, condição elementar para a realização posterior da revolução socialista. Esse erro de avaliação, que levava necessariamente ao erro grave de estratégia, de tática e de formas de luta, cometido pela esquerda de praticamente todos os países da América Latina e do Caribe custou muito caro, ao povo e aos próprios partidos de esquerda, notadamente os comunistas. As burguesias nativas nunca quiseram essa aliança tática com o seu próprio povo, pelo contrário, fugiam e fogem disso, preferindo ficar na condição de sócio menor do desenvolvimento imperialista mundial. O conceito falso de globalização, tão badalado nas últimas décadas, cai como uma luva para nossa classe dominante, pois falar em projeto nacional tornou-se quase uma heresia, e nossa elite dominante tem medo disso. A democracia permitida é a democracia do mercado, do direito universal de exploração que os monopólios dos países imperialistas querem ter. A necessidade da reforma agrária para o desenvolvimento do capitalismo cedeu lugar ao desenvolvimento capitalista do campo, através do agro-negócio do capital monopolista, interno e externo, o que uniu nossos antigos e atrasados fazendeiros com a modernidade industrial e com o capital financeiro, tornando-os modernos defensores do atraso nacional, com métodos tão violentos quanto os de duzentos anos atrás.
Os povos latino-americanos e caribenhos viveram todas as agruras de terem sido parte importante do esforço para a acumulação primitiva que foi a base material para a propulsão do capitalismo moderno, e eles próprios não tiveram o direito de viver em um país de capitalismo desenvolvido. As classes dominantes desta parte do mundo sempre preferiram resguardar sua parte generosa da espoliação dos seus próprios povos, deixando aos verdadeiros produtores a fome, a miséria e a violência do Estado e dos capangas privados. O desenvolvimento capitalista possível nesta parte do mundo é esse que temos, e sonhar em construir nessa altura da história um desenvolvimento capitalista autônomo é fechar os olhos para a existência do imperialismo como um conjunto de estados nacionais fortes, sedutores e bem armados. Não existe salvação dentro do capitalismo. Até mesmo naqueles países onde o capitalismo foi desenvolvido de forma independente e vigorosa, a pobreza tem tomado o lugar das conquistas de direitos para as amplas massas. Nunca mais haverá o “estado de bem estar social” sonhado e em grande medida alcançado nos países europeus e na maior parte da América do Norte na segunda metade do século XX. O capitalismo deixou de ser uma força progressiva praticamente no seu nascedouro. Napoleão Bonaparte, seguindo a necessidade da burguesia européia do século XIX, matou o sonho da “igualdade, liberdade e fraternidade” da revolução jacobina. A cada dia mais, liberdade é um conceito adequado apenas para se referir à liberdade dos monopólios continuarem explorando e espoliando os povos; igualdade existe apenas como imposição do “direito comercial” dos monopólios, para continuarem produzindo, comprando e vendendo conforme as condições do mercado, que são impostas por eles mesmos; fraternidade é o conluio entre todos aqueles que dividem o direito de explorar e de constituir instituições para a manutenção da ordem econômica, social e política vigentes. Igualdade, liberdade e fraternidade substancial, como conceito de possível alcance para todos, não pode ser realizada no capitalismo. Quem quiser se enganar, ou enganar os outros, que fique imaginando o retorno do estado de bem estar social para o conjunto dos povos do mundo, coisa que nunca aconteceu, e já não poderá acontecer, pois até mesmo nos países centrais do capitalismo as condições de vida dos povos estão sendo abaladas a cada dia.
O Capitalismo é um Sistema de Crises
Não é mais possível realizar o estado de bem estar social para a maioria da população, nem mesmo nos países mais desenvolvidos do ponto de vista do capitalismo, porque o sistema não comporta mais essa realidade. Como dito acima, a fase progressista do capitalismo foi esgotada. Do ponto de vista político e filosófico, foi esgotada já no século XIX. Do ponto de vista econômico, esgotou-se no século XX. O capitalismo “nunca mais terá o corpinho que teve entre 1945 e 1970”, como já disse tantas vezes um camarada. Sistema definido pela produção e circulação de mercadorias, produzidas em dadas condições de produtividade, adotando forças produtivas determinadas, esgota-se conforme avança seu próprio mecanismo de propulsão.
As contradições internas do capitalismo não podem ser resolvidas dentro de seus próprios parâmetros, por mais que insistam seus defensores, mesmo que muitos possam acreditar com sinceridade no que dizem. A contradição entre produção e controle, onde muitos produzem e poucos controlam a produção, os objetivos da produção e os meios pelos quais se produz inviabiliza, por ela própria, a possibilidade de emancipação do gênero humano. A contradição entre produção e distribuição, onde a produção é coletiva, mas a apropriação é privada, afasta a maioria dos produtores da possibilidade de usufruírem das riquezas produzidas por eles próprios, gerando o afastamento do ser humano do produto do seu trabalho, podendo haver fome mesmo dentro de vastos campos plantados. A contradição entre produção e concentração, com os meios de produção cada vez mais concentrados nas mãos de poucos, gerando monopólios e matando a livre concorrência da qual tanto se orgulham os defensores do capitalismo. A contradição entre produção e taxa de lucro, onde a taxa de lucro é cada vez menor para o mesmo volume de mercadorias produzidas, o que vai inviabilizando as iniciativas empresariais menores em benefício das maiores, matando postos de trabalho e aniquilando a capacidade social de consumo. É preciso produzir um volume cada vez maior de mercadorias para garantir uma quantidade absoluta de lucro que supere a queda relativa da taxa de lucro, o que inviabiliza as pequenas iniciativas, tanto na indústria quanto no comércio.
Estes e outros mecanismos geram uma superprodução de mercadorias, que esbarra na impossibilidade de aquisição por parte da sociedade consumidora, esta mesmo em definhamento em virtude do desemprego e do achatamento dos salários. Estes mecanismos típicos do metabolismo capitalista geraram uma crise estrutural da qual não é mais possível sair pelas próprias regras do jogo capitalista. A cada esforço para a saída de uma crise se geram os mecanismos que produzem outra crise, ainda mais grave, no momento posterior. Assim, os soluços de crescimento, cada vez mais curtos e mais tímidos, são seguidos por crises mais agudas e mais largas. A crise, que é gerada pelo metabolismo próprio do capitalismo, tem como vítimas em primeiro lugar os proletários e as massas pobres, pois o estado vai perdendo as condições de investimento em políticas públicas de educação, saúde, segurança, saneamento, etc, até mesmo porque os monopólios impõem reduções nas taxas de impostos e melhores condições de exploração. Como os estados, no capitalismo, servem para preservar os interesses das classes economicamente dominantes, deixam de investir em políticas públicas para salvar os monopólios das quebradeiras, e encaminham medidas legislativas para a retirada de direitos trabalhistas e de garantias sociais. Isso significa um encurtamento continuado da capacidade do capitalismo absorver em seu mercado produtor uma parcela cada vez maior das imensas massas que só têm para a sobrevivência a própria força de trabalho, alijados que foram, ao longo de séculos, dos meios de produção. Parece evidente que aqueles que não têm acesso aos meios de produção acabam tendo como garantia de sobrevivência apenas a sua própria capacidade física e mental de trabalhar, naturalmente, para aqueles poucos que detém os meios de produção. A propriedade privada dos meios de produção é, portanto, uma realidade que precisa ser revista pela humanidade. E isso vale para o conjunto da humanidade e não apenas para os países latino-americanos.
Se o capitalismo não consegue sequer explorar do ponto de vista capitalista aqueles dos quais tomou os meios de produção, a humanidade não pode aceitar como natural a miséria e a morte de contingentes cada vez maior de pessoas! Se o capitalismo não pode garantir a vida nem mesmo da condição animal do ser humano, parece evidente que precisamos questionar a existência do capitalismo. Alguns defensores do capitalismo, e mesmo uma infinidade de seus críticos que não colocam a necessidade irrevogável de superá-lo, defendem formas de controle das regras do capitalismo. Sim, é possível controlar relativamente certas volúpias desse modo de produção, reduzindo a jornada de trabalho, impondo taxações e impostos, delimitando limites para a deterioração do meio ambiente. Isso os trabalhadores têm feito ao longo dos séculos, e é necessário continuarmos lutando por isso. No entanto, as lutas pela “distribuição de renda”, pela elevação dos salários, pela redução da jornada de trabalho, pela preservação das condições de dignidade dos trabalhadores e das massas empobrecidas, são lutas que não levam à superação dos problemas, na raiz dos problemas, pois são lutas mitigatórias, postergatórias. Por mais que seja importante e mesmo necessário lutar pelos avanços imediatos mesmo dentro do capitalismo, é preciso que a luta geral busque ir além do capitalismo, a ponto de destruí-lo enquanto forma de organização social da produção e da distribuição. Só a socialização dos meios de produção tornará possível ao ser humano como gênero e como civilização planejar de forma duradoura as condições para que todos tenham condições boas de vida. E isso não se faz com meia dúzia de doces palavras, nem com bravatas esquerdistas.
Limites para a Emancipação Nacional dentro da Ordem Capitalista
Se, por um lado, é um erro acreditar em revolução nacional, democrática e agrária em aliança com a burguesia, outro erro seria desleixar a necessidade de se construir os mecanismos necessários à construção de projetos nacionais autônomos, com democracia substancial, reforma agrária, reformas urbanas, enfim, a construção das bases materiais para que todos os compatriotas possam ter vida digna, “em abundância”. Essa tarefa precisa ser feita por um bloco de forças sociais e políticas que seja capaz de impor a vontade dos povos de baixo para cima, e com certeza terá a oposição sistemática e violenta das classes dominantes, internas e externas. Qualquer projeto de construção de direitos substanciais para todos os povos na América Latina e no Caribe precisa se colocar o desafio de derrotar as oligarquias internas, o que só pode ser feito mediante outro conceito de sociedade que não o capitalismo, o que significa ter que enfrentar o imperialismo também. Não são apenas doces palavras que alcançarão esse resultado. As massas populares, para alcançarem os direitos tão sonhados, precisam mergulhar no debate da transição socialista, ou da revolução socialista. Isso não vai acontecer apenas com a explicação didática dos conceitos do socialismo para um grupo, mesmo que grande, da população. Só pode ser alcançado pela luta direta das massas do povo, organizado para buscar seus direitos elementares: direito à alimentação, à moradia, salário digno, acesso à terra, à educação, à saúde, à segurança, ao meio ambiente respirável. Um projeto de sociedade que una todas essas lutas perceberá a necessidade de transformações mais profundas para que se chegue a resultados efetivos. Para isso é preciso desapropriar os latifúndios, terrenos urbanos, fazer saneamento básico, tornar públicas empresas estratégicas, controlar os recursos energéticos e naturais, os meios de transporte, os meios de informação e de comunicação. E não se chegará a isso sem a reação violenta dos hoje detentores do poder econômico e político, o que pressupõe a necessidade de estarmos preparados também para a defesa.
Não é verdade que nosso povo não se mobiliza para essas coisas. Quando as massas populares acreditam efetivamente em suas lideranças, e percebem nelas a vontade e a possibilidade real de realizar tais tarefas, a massa do povo se mobiliza. Isso tem acontecido em Nossa América, ao longo de séculos de lutas, infelizmente, quase sempre derrotadas com muita violência patrocinada pelas classes dominantes internas, sempre apoiadas pelo imperialismo. E disso precisamos falar, e começamos esse texto para chegar a esse ponto.
Os povos da América Latina e do Caribe sempre lutaram para a manutenção ou a conquista destes direitos, desde os primeiros anos da colonização portuguesa e espanhola. Infelizmente, na maior parte das vezes, lutaram sem clareza quanto ao caráter e o potencial do inimigo, sem estratégia adequada, com as formas e os instrumentos de luta que dispunham. Ainda hoje temos muita dificuldade em estabelecer uma estratégia, um programa e um conjunto de táticas que possam fazer avançar essa luta, que nunca cessou a não ser pelo peso da violência. Nossos povos têm lutado ao longo de 500 anos, e nada indica que querem parar de lutar. Apesar de todos os aparelhos de domesticação ideológica, da massificação alienante dos meios de comunicação de massa, nosso povo continua se levantando.
Fomos inseridos de forma subordinada no capitalismo, mediante a violência do Estado oligárquico autocrático e de outros sistemas de agressão. Sempre que os povos ameaçaram assumir o controle sobre os rumos das nossas sociedades, mesmo com governos de leve verniz democrático e de esquerda, o inimigo interno, ancorado no imperialismo, realizou os golpes de Estado mais escancarados e mais violentos. E sempre o fizeram em nome da democracia e em nome da liberdade, mas, claro, estão falando da liberdade dos monopólios continuarem nos explorando, e da democracia formal que representa quase nada para os reais interesses dos povos.
Na primeira metade do século XX, vários países da América Latina realizaram sua industrialização, mesmo que de forma subordinada aos interesses do imperialismo e lavada à frente em grande medida por seus monopólios. A proletarização de imensas massas possibilitou a construção de organizações populares fortes, mesmo que em muitos casos controladas pelo Estado, como é o caso do movimento sindical brasileiro. Esse impulso das bases da sociedade, ainda que tímido, fez erigir governos democráticos de aspecto desenvolvimentista, todos ou quase todos com ilusão de desenvolver seus países em acordo com a burguesia nacional. Todos eles foram derrubados por sangrentas ditaduras militares, que tinham como respaldo os monopólios privados, o latifúndio e o imperialismo. Em nome da democracia, para “livrar o povo do perigo vermelho”, cassaram, torturaram e assassinaram muitos milhares de lideranças populares e até mesmo personalidades democráticas e intelectuais nada ofensivos à ordem. Registre-se que esses golpes de Estado, mesmo sendo conduzidos por militares, tinham em sua iniciativa e em sua direção, apenas uma pequena casta de oficiais, ligada e formada pela ideologia da guerra fria, nos conceitos da “lei de segurança nacional”, na “Escola das Américas”, uma instituição militar imperialista que ensinava até mesmo métodos de tortura, plantada à força no Panamá, que hoje continua existindo, mas em território estadunidense. A maioria dos militares seguiu disciplinadamente seus chefes algozes e muito mal intencionados, e os militares identificados com os governos populares ou diretamente com o povo foram as primeiras vítimas da violência dos golpistas.
A Reciclagem das Ditaduras e a Manutenção dos Aparatos de Repressão
A partir da década de 1980, estando aniquilada a maior parte das organizações de esquerda, e mediante dificuldades de se manter a sustentação desses governos ditatoriais, o próprio imperialismo e as classes dominantes crioulas de Nossa América, passaram à etapa da transição, “lenta, gradual e segura”, na expressão do general presidente Ernesto Geisel, do Brasil. Mantiveram todos os aparatos de repressão, reciclando a ditadura com mecanismos de maiores direitos civis, restabelecendo a democracia formal. Depois de décadas de ditaduras pró-imperialistas (cinicamente feitas em nome da pátria), os monopólios internacionais tinham muito mais inserção na economia de todos os países, os direitos trabalhistas e as garantias sociais haviam diminuído. Com a derrocada do socialismo no Leste europeu e com o fim da União Soviética (URSS), o imperialismo busca se metamorfosear de “globalização”, determinando de forma arbitrária e sem nenhum embasamento objetivo o fim da luta de classes e o fim da história. O capitalismo pretendia mais mil anos de domínio sem qualquer contestação. A derrota histórica gigantesca que representou para o conjunto dos povos do mundo o fim do socialismo no Leste europeu, dispersou as organizações de esquerda, muitas deixaram mesmo de existir. A nova filosofia dominante enfraqueceu os organismos de representação dos proletários, os sindicatos, a ponto de estes passarem a ser questionados até por estudiosos do movimento dos trabalhadores, ou mesmo por antigos dirigentes operários. Foram mais duas ou três décadas de derrotas, de perda de direitos, de pulverização das organizações e de absoluta ausência de um bloco de forças sociais capaz de enfrentar as dificuldades deste (ou daquele?) tempo. Apenas Cuba e alguns movimentos insurgentes resistiram à década de 1990, de forma heróica, diga-se.
Os Levantes Populares dos Últimos Dez Anos
Faz dez anos que os povos voltam a se levantar em Nossa América, derrubando governos identificados com o empobrecimento das massas, constituindo novos governos para, em seguida e em vários casos, os derrubarem novamente quando estes se mostram incapazes de se tornarem independentes do conjunto de amarras a que historicamente estivemos sujeitos. Isso aconteceu no Equador, na Bolívia, na Argentina. Na Venezuela inicialmente, esse povo sofrido e desorganizado, com poucas lideranças existentes depois da violência dos golpes de Estado, identificou-se com um coronel do exército daquele país, apenas porque ele se opôs à violência dos militares contra o povo (Caracazo – 1989) e tentou um levante (1992) que pretendia derrubar um dos tantos governos identificado com a política de interesse dos monopólios, do latifúndio e do imperialismo. O levante de 1992 deu errado, mas seis anos depois o povo venezuelano elegeu com resultado esmagador o coronel que saíra da cadeia há pouco tempo. De lá para cá, o governo Chávez vem avançando pouco à pouco, com contradições internas, mas em consonância com a vontade majoritária do povo, e por isso já sobreviveu a um golpe, que durou apenas dois dias, em abril de 2002.
Depois disso, o povo da Bolívia elegeu um líder indígena para ser seu presidente, depois de ter derrubado dois governos de cunho conservador. No Equador, um economista pouco afeito à política, foi colocado pelo povo na presidência da república, depois que o povo elegeu um general que prometeu soberania nacional e popular, mas que ficou mesmo foi com os monopólios, sendo derrubado por uma avalanche de patriotas. Em quase todos os países da América Latina e do Caribe governos identificados com os setores populares foram eleitos, mesmo que muitos não tenham ou não estejam correspondendo com fidelidade aos anseios mais profundos das massas populares. Poucos países da ampla América Latina preservaram governos reacionários e integralmente identificados com o imperialismo, valendo citar a Colômbia e o México, neste último, no entanto, com fraude grosseira no processo eleitoral, o que levou a imensas contestações populares. Na América Central foram eleitos os sandinistas na Nicarágua e a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional em El Salvador, para citar apenas dois movimentos que comandaram a luta armada em seus países na década de 1980. A Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), proposta no final do século passado pelos Estados Unidos, que representaria a re-colonização do continente latino-americano e caribenho pelos EUA, foi derrotada por este movimento, e o governo Chávez da Venezuela, em conjunto com a revolução socialista de Cuba, propuseram a ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos da América), uma proposta de colaboração mútua entre os países, alheia aos interesses do imperialismo e da lógica nua e crua do mercado.
Honduras elegeu Manuel Zelaya, um fazendeiro do Partido Liberal, que já tem 118 anos de história, sendo um dos dois partidos tradicionais do país. Honduras também passou por ditaduras militares a partir de 1963, e foi na década de 1980 o suporte territorial para todos os interesses golpistas na América Central, sendo considerada por muitos, na época, “o maior porta-aviões do mundo”, num dizer jocoso, pois era em seu território que estava localizado a maior máquina de guerra, de tortura, de assassinatos da América Central, servindo de porto seguro para a reação nicaragüense, salvadorenha e güatemalteca (pelo menos), sempre amparada pela logística, pela inteligência e pelos instrutores vindos dos Estados Unidos. A direita de Honduras é muito conservadora e violenta, tendo ainda em seus aparatos gente que participou de corpo presente de inúmeros massacres e crimes contra os movimentos de esquerda no continente.
Manuel Zelaya, líder moderado de um partido composto de todas as classes sociais do país, resolveu aderir à ALBA, seguindo nisso os governos do Equador, da Nicarágua, da Bolívia e outros tantos países do Caribe, além, naturalmente, da Venezuela e de Cuba, proponentes da Aliança anti-imperialista. Além disso, no final de seu mandato, propôs a convocação de uma Assembléia Constituinte, que seria decidida, pelo sim ou pelo não, no mesmo dia em que deveria ser realizada a eleição para o novo presidente de Honduras.
O Golpe de Estado em Honduras
E o golpe de 28 de junho de 2009 aconteceu por isso, porque o governo queria que o povo dissesse se quer ou não uma nova constituição. Se aprovada, a Assembléia Constituinte seria eleita e aconteceria a partir do ano que vem, já com Zelaya fora do governo. Então a direita realizou o golpe, como uma defesa preventiva, buscando evitar que o povo tomasse gosto pela participação na definição do futuro do país. Os motivos do golpe de Estado em Honduras estão tergiversados para a maioria dos brasileiros. Dizem que deram um golpe porque o governo Zelaya queria aprovar a sua reeleição, mas essa informação é falsa. Além do mais, o mecanismo da reeleição foi aprovado no Brasil de Fernando Henrique Cardoso (com “mensalão” para muitos congressistas), na Argentina de Carlos Menen e no Peru de Alberto Fugimori sem consulta ao povo, como todos de boa memória lembram.
Em razão desse golpe, realizado da forma mais criminosa possível, com o presidente legítimo sendo seqüestrado na “casa presidencial” e lavado para o aeroporto de San José da Costa Rica, o povo tem se levantado em Honduras, e isso os golpistas não esperavam. Os golpistas não esperavam também que o mundo inteiro condenaria o golpe, como tem acontecido de forma quase unânime, mesmo que com dubiedade por alguns governos, como o de Barak Obama, nos EUA, que manifestou-se contra o golpe, mas que os monopólios originários dos Estados Unidos sejam parte integrante do golpe.
Nas menos de sessenta horas em que estivemos em Tegucigalpa, a capital hondurenha, vimos acontecimentos extraordinários: parte do Congresso Nacional e todas as organizações populares de Honduras têm se levantado contra o golpe. Além do mais, uma massa de pessoas sem qualquer identificação política com os partidos ou com os movimentos sociais, de forma espontânea, não reconhecem o governo golpista, indo para as ruas manifestar sua indignação. Todos os dias ocorrem manifestações na capital e em outras cidades, como San Pedro Sula, a cidade industrial do país. Já houve mortes nos confrontos populares com as forças obedientes ao governo golpista, houve desaparecimento de militantes, pessoas que foram presas apareceram mortas, até mesmo à golpes de facas. Todos os dias, outras dezenas de pessoas são presas, e muitas têm sido agredidas fisicamente, inclusive parlamentares, como o deputado Marvin Ponce, do Partido da Unificação Democrática, agredido no dia 12 de agosto, tendo um dos braços e costelas quebrados.
O general Romeo Vasco Velásquez comandou as forças militares que seqüestraram o presidente legítimo e o abandonaram no aeroporto da capital de Costa Rica, assim como outros militares de alta patente participam e apóiam o golpe, colocando o exército a serviço do golpe e da repressão à resistência. Mas fala-se em descontentamento dentro do próprio oficialato do exército hondurenho, situação que não se pode constatar e não é de fácil identificação em virtude do fechamento dos militares e do respeito à hierarquia.
A Frente Nacional de Resistência Contra o Golpe de Estado, formada por parlamentares e por todos os movimentos sociais e sindicais do país, busca coordenar a resistência, mas ela ocorre com muito mais espontaneidade do que o potencial de coordenação da Frente, criando um ambiente de difícil análise e compreensão. No meio das manifestações, agentes do golpe espalham o terror, também para transferir a responsabilidade para a resistência, que busca se manter pacífica. Sim, os dirigentes da Frente de Resistência ao Golpe repetem insistentemente que as pessoas devem manter-se pacíficas, não aceitando provocações e nem fazendo provocações. Mas, como sempre ocorre, provocadores das próprias forças golpistas se infiltram nas manifestações para provocar o caos e criminalizar os manifestantes, que, quando presos, são acusados de terrorismo e sedição (alguma coisa como traição à pátria, ou tentativa de divisão do país). No entanto, não tem como negar: as pessoas do povo, grupos de jovens estudantes organizados, estão fora do controle da direção da Frente. Além disso, nos momentos em que algum policial ou algum militar usa da força para dispersar a manifestação, quase todas as pessoas responde no mesmo tom. Pudemos ver senhoras idosas, evangélicas, pichando paredes, como pudemos ver senhores de mais de cinqüenta anos de idade, visivelmente trabalhadores, arrancando bancos das praças públicas para arremessar contra as forças de contenção das manifestações. Os ânimos acirram-se, a divisão da sociedade fica cada vez mais evidente, e a violência generalizada acabou sendo o desfecho das manifestações que acompanhamos. Provocação do inimigo? Pode até ser, mas não tem como escapar da análise o fato de que a espontaneidade do movimento de resistência não está sob o controle perfeito da direção da Frente de Resistência. E, claro que isso não desabona os dirigentes, pois a maioria dos manifestantes nunca esteve organizada em qualquer partido e nem mesmo em qualquer sindicato. São as massas populares que vão para as ruas conforme sua vontade, e reagem com pedras às bombas de gás e aos tiros das forças de contenção. Honduras está em “transe”, uma força sagrada paira sobre a cabeça de evangélicos, umbandistas, das pessoas pobres em geral. A participação de muitos religiosos ocorre também porque o bispo chefe da igreja católica de Honduras é um dos golpistas, e vai realizar missas no pátio da “casa presidencial” ao lado do general e do presidente golpistas. Some-se a isso a participação da igreja católica na colonização violenta do país, e uma maioria do povo, que é maya nos traços e na cultura, acaba, mesmo de forma inconsciente, deixando extravasar cinco séculos de resignação convulsiva.
Não tem saída fácil para a crise política instalada em Honduras, pois o povo nas ruas não tem cedido a qualquer proposta que não seja o retorno do presidente legítimo, o único que aceitam que lhes governe. Até mesmo a eleição, prevista para o final do mês de novembro está comprometida, pois todos que resistem ao golpe afirmam que não existe poder legítimo no país para convocar a eleição. Querem Zelaya de volta, para que ele convoque a eleição e a consulta quanto à formação de uma Assembléia Constituinte. Evidente que os golpistas não aceitam tal saída, pois teriam que reconhecer e encarar seus erros e mesmo seus crimes. Nenhuma das saídas negociadas que estão sendo propostas por organismos internacionais, mesmo a Organização dos Estados Americanos (OEA), foi aceita pelo governo golpista, o que acirra todos os ânimos.
É impossível prever um desfecho imediato para esse conflito, e só mesmo uma ação decisiva e enérgica da OEA poderia devolver a paz social para o povo hondurenho. No entanto, não tenhamos ilusão, pois a OEA segue os interesses dos estados nacionais que a compõe, e estes estados são dirigidos pelos monopólios privados que têm interesses bastante concretos no golpe, ou, ainda por outro ângulo, têm medo do levantamento do povo hondurenho, que imporia, no mínimo, limites à sua atuação no país. Já alguns governos, como o de Lula, do Brasil, condenam o golpe, mas lhes falta força de ânimo para exigir que a OEA tome as medidas cabíveis. Naturalmente, se os interesses dos monopólios estivessem ameaçados, os organismos internacionais atuariam de forma diferente. Enquanto os governos e os organismos pretensamente multilaterais ficam no discurso, nem sempre muito claro, aumenta a violência dos golpistas contra a resistência, e o povo continua indo às ruas. Só mesmo um mar de sangue, um verdadeiro massacre social, poderia garantir aos golpistas a possibilidade de dizer que existe um “governo de fato” em Honduras. Naturalmente, essa é a pior saída possível, e o mundo inteiro precisa voltar seus olhos para impedir que tal massacre aconteça. É dever humanitário de todos os homens e mulheres, em qualquer parte do mundo, manifestar o mais veemente rechaço à violência ilegal e ilegítima contra um povo que só quer viver, trabalhar e poder decidir quem deve ser seu governo e como devem ser suas instituições.
Aqui no Brasil, precisamos enfrentar esse debate, de frente. Parece claro que o “esquecimento” do assunto por parte da grande mídia, que as manifestações de que não deveríamos gastar tempo com os assuntos de Honduras já que temos muitos problemas a resolver aqui, trazem um ideológico desprezo pela sorte dos povos irmãos. E o que fica evidente, até porque escrevem isso com quase todas as letras, é que, no fundo, acham legítimo um golpe que seja desferido contra um presidente eleito que venha caminhando na direção da democracia substancial, da soberania popular, seguindo uma tática continental criada por Hugo Chávez e Fidel Castro. Alguns formadores de opinião dos meios de comunicação, falam em “ditadura plebiscitária” para se referir ao método bolivariano de democracia, e é preciso que se faça essa discussão. Como podem falar em “ditadura plebiscitária” se o plebiscito é justamente a forma de um governo perguntar a seu povo o que pensa sobre determinado assunto? Como pode ser ditatorial a consulta ao povo? Acaso querem se referir à vontade da maioria como algo inaceitável? Que tipo de democratas são estes senhores, ou que tipo de confusão lhes oblitera a mente?
Estado Autocrático Versus Democracia Substancial
Voltando aos pensadores contratualistas, àqueles que estabeleceram os princípios filosóficos e teóricos da república burguesa, especialmente ao mais apreciado por eles mesmos, Jean Jacques Rousseau, podemos perceber claramente como os defensores da democracia formal, na prática um Estado autocrático, não aceitam a democracia substancial, a única que interessa à maioria dos integrantes de uma sociedade. Rosseau lamentava a dificuldade de uma democracia plena em sociedades de grande contingente humano, pois, nas grandes sociedades seria inviável a presença de todos os cidadãos em praça pública para tomar as decisões importantes. Remetia-se às cidades (polis) gregas dos períodos democráticos, onde os cidadãos (os não escravos, e do sexo masculino) decidiam em praça pública os destinos daquela sociedade, e lamentava que isso não seria possível em sociedades numerosas e de grandes extensões territoriais. Pois bem, para minimizar as dificuldades de uma sociedade de milhões de cidadãos e de grande extensão geográfica, os constituintes modernos criaram a figura institucional dos plebiscitos, dos referendos e das consultas ao povo, através do voto direto. O Brasil tem cerca de cento e dez milhões de eleitores (cidadãos e cidadãs com direito de votar e de ser votados), e todos eles poderiam decidir, em um único dia de votação, todas as questões importantes para o futuro da sociedade brasileira.
Desde 1988, quando o plebiscito foi instituído na atual Constituição brasileira, foram realizados dois plebiscitos institucionais: um para decidir sobre a forma de governo, em 1993, quando o povo disse que quer continuar sendo uma república presidencialista e constitucional; outro em outubro de 2005, para que o povo decidisse sobre o direito dos cidadãos terem ou não armas, e o povo decidiu que quer continuar tendo o direito de comprar e de portar arma, desde que com autorização das autoridades competentes. O plebiscito da forma de governo teve grande importância, e foi oportuna a sua realização. Quanto ao plebiscito do desarmamento, o tema não justifica um plebiscito, e o povo disse um não bastante qualificado ao governo que gasta dinheiro para fazer pergunta besta, e rechaçou a proposta governista de desarmar integralmente o povo. Evidente que seria mais importante e mais oportuno se o governo tivesse feito um plebiscito para perguntar se os brasileiros queriam ou não que fossem privatizadas a Vale do Rio Doce, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Embraer, o Usiminas, a Telebrás, a geração de energia elétrica, dentre tantas empresas importantes e estratégicas para o futuro do país que privatizaram sem perguntar nada ao povo. Poderiam fazer um plebiscito para perguntar ao povo se este quer que sejam ou não reestatizadas todas aquelas empresas, ou ainda se o povo quer ou não continuar pagando a dívida externa e interna, mesmo sabendo que ela já foi paga várias vezes. Alguém tem dúvida sobre qual seria a resposta popular a cada uma dessas propostas de plebiscito? Realizar tais plebiscitos seria um atentado à democracia, seria instituir uma “ditadura plebiscitária”? Do nosso ponto de vista, isso seria construir uma democracia substancial no lugar da democracia formal que temos. Mas não tenhamos dúvida de que muitos formadores de opinião dos monopólios da comunicação nacional acabariam chamando isso de ditadura.
Para os defensores das classes dominantes: o latifúndio, os monopólios e o imperialismo (que se incrusta nas empresas daqui, até mesmo nas estatais, e no próprio aparato de Estado, através de tecnocratas nascidos aqui, mas que falam como gringos), democracia é uma mera formalidade, sem substância material em termos de direitos sociais e econômicos para as grandes massas populares. Eles acham suficiente conceder às massas trabalhadoras o direito de ir às urnas a cada quatro anos escolher seus dirigentes executivos e seus parlamentares, em eleições que todos sabem que são viciadas, que o poder econômico das grandes empresas decide quase todos os eleitos. Não há e nem haverá legislação que possa impedir a supremacia do poder econômico nos processos eleitorais da democracia formal burguesa, exceto diante de grandes levantamentos populares e do despertar da consciência social de que devem rechaçar aqueles que não estão vinculados e comprometidos integralmente com as vontades majoritárias do povo. A república pretende ser o poder soberano do povo, para decidir quais devem ser os governantes, quais as instituições que devem existir e quais os mecanismos de democracia a vigorar. No entanto, o desenvolvimento econômico do capitalismo, de forma desigual e combinada em todo o mundo, fez corromper a instituição maior da república democrática, que é a vontade popular através do voto. Ninguém medianamente informado desconhece as inúmeras formas de burlar a vontade popular, arregimentando votos da massa desorganizada para políticos que, quando nos cargos, defendem, no essencial, os interesses dos grandes empresários, daqueles que financiaram suas campanhas. É muito raro um detentor de mandato no Brasil que se elege sem financiamento empresarial. É muito raro também o detentor de mandato, executivo ou legislativo, que atua com fidelidade plena às consignas que usou para angariar votos.
O que de melhor estes senhores que são contra a soberania popular tem em seu favor é o fato de acreditarem (é possível que muitos deles acreditem nisso) que a sociedade só pode se desenvolver sob a direção econômica dos monopólios, onde os trabalhadores também seriam beneficiados pelo crescimento dos negócios privados, pois assim ganhariam empregos, e teriam um salário compatível com o crescimento e a lucratividade dos negócios dos patrões. Por mais que seja uma generosidade nossa avaliar que eles estão sendo honestos quando argumentam isso, é preciso constatar e combater esta tese, pois ela trás no fundo o desprezo à capacidade humana de aprendizado e de superação, pois nega a possibilidade dos próprios trabalhadores estarem aptos (ou se tornarem aptos) ao gerenciamento da produção e da distribuição das riquezas socialmente produzidas. Sim, mesmo que sejam honestos ao afirmar que do “sucesso” do patrão depende a felicidade do trabalhador, eles estão com isso desprezando a capacidade e o potencial humanizador da classe que tudo produz, que tudo faz circular, que tudo realiza. Reside aqui um fundo filosófico aristocrático e elitista. Mesmo que fosse possível no capitalismo, economicamente, o pleno emprego e a garantia de amplos direitos aos trabalhadores e às camadas populares, ainda assim a forma privada de organizar a produção e a distribuição das riquezas seria inadequada à humanização do mundo, pois no mundo onde uns poucos controlam e a maioria é controlada, jamais haverá paz efetiva e sim opressão. Uma sociedade que se queira humana e humanizadora precisa colocar o conjunto do povo como protagonista dos seus destinos, mesmo que dirigentes estejam no comando dos governos para a realização das tarefas necessárias, pelo tempo que seja necessário. Os dirigentes dirigem, mas terão mais êxito e são de fato legítimos quando convocam as massas populares para tomar as decisões mais importantes. Ao contrário disso, a democracia é apenas uma formalidade, sendo o Estado a consolidação da autocracia existente no domínio das relações econômicas. Diante da impossibilidade objetiva dos monopólios privados do capitalismo darem sustentação econômica às necessidades sociais elementares, o Estado que está ao lado dos monopólios será, por imposição, um Estado opressor contra seu próprio povo, pois terá a tarefa de manter o controle social, alijando as organizações populares e dispersando pela violência ou pela desinformação (e contra-informação) o imenso contingente de pobres.
O levante dos povos na América Latina e do Caribe nos últimos dez anos está fazendo cair a máscara de muitos pressupostos democratas. Quando alvejam governos populares como os de Hugo Chávez e Evo Morales estão esbravejando contra a democracia substancial, deixando claro que só aceitam a democracia como mera formalidade, conveniência para manter a ordem geral das coisas em seu lugar, com os pobres ficando mais pobres e um conjunto sempre menor de ricos ficando a cada dia mais ricos, mesmo diante das crises econômicas que eles próprios provocam, pois que são eles os defensores do capitalismo como forma de produção e de distribuição das riquezas socialmente produzidas. Alguns formadores de opinião da mídia brasileira demonstraram espanto ao perceber que o governo de Evo Morales ia cumprir a promessa de campanha de estatizar os hidrocarbonetos (petróleo e gás mineral). A notícia chegou mais ou menos assim: “Senhores, o governo boliviano de Evo Morales vai cumprir suas promessas de campanha, e estatizar a exploração e distribuição dos hidrocarbonetos!!!” Por que tanto espanto, se estava apenas cumprindo compromissos de campanha? Ora, o espanto é porque tais meios de comunicação estão acostumados com governos que se elegem prometendo uma coisa e depois fazem outra. No Brasil, e é de se julgar que em qualquer país da América Latina, nenhum governante foi eleito garantindo que privatizaria tudo que pudesse, ou tudo que os monopólios privados, quase todos de origem imperialista, estivessem interessados em abocanhar. Mas realizaram isso, traindo o povo, mesmo quando esse, iludido pelos meios de comunicação, ficou inerte.
Agora o povo desperta da inércia, e se põe a marchar, uns mais depressa, outros ainda devagar, ou sem sequer perceber que precisa marchar. Na Venezuela, na Bolívia, no Equador, em El Salvador, na Nicarágua o povo marcha com mais velocidade. No Brasil, na Argentina, no Chile, no Paraguai e em tantos outros países, o povo marcha lentamente, também porque os governos controlam a velocidade da marcha, com políticas compensatórias e com falsas esperanças no amanhã. Em Honduras, a marcha seguia lenta, mas a direita rancorosa, respaldada pelos monopólios privados dos gringos, resolveu dar um golpe preventivo, antes que o povo acostumasse com a idéia (legítima e necessária) de decidir sobre os rumos econômicos, sociais e políticos do país. Essa direita errou os cálculos porque as massas já haviam começado a gostar da idéia de ajudar a decidir, e o golpe fez o povo ver, de um estalo, que os golpistas têm um único objetivo: deter sua marcha até a soberania popular, na direção das mudanças necessárias para que o povo pobre possa ter acesso à terra, ao emprego, à educação, à saúde e à sua própria cultura. E o povo está indo às ruas, mesmo diante da mais atroz repressão.
Por tudo que foi dito acima, o golpe em Honduras não é apenas contra o povo hondurenho, e sim contra todos os povos da América Latina e do Caribe. Se esse golpe se consolidar, Honduras voltará a ser plataforma de lançamento dos ataques que o imperialismo pretende engendrar contra os processos de emancipação dos povos vizinhos, de El Salvador, da Nicarágua e da Guatemala. Na América do Sul, o imperialismo tem sua plataforma, na Colômbia do oligarca Álvaro Uribe, e tem intensificado o poderio de sua máquina de morte, abrindo mais bases militares naquele país e gerenciando as próprias bases militares do governo colombiano. A esperança dos povos da América Latina e do Caribe seria o final do governo Uribe, quiçá com uma vitória da insurgência, ou por via eleitoral, ou ainda uma combinação das duas coisas, para o estabelecimento naquele país andino de um governo popular identificado com as mudanças democráticas. Para evitar isso, Álvaro Uribe fala na vontade de concorrer pela terceira vez à presidência da república, e os meios de comunicação calam sobre isso. Aproveitando o final de feira do governo Uribe (se ele não conseguir a reeleição), os Estados Unidos vão fazer acordos com o atual governo, acordos em nome do Estado colombiano, o que dificultará a reversão disso mesmo num governo diferente nos anos vindouros. Mas consideram pouco: querem seus coturnos na América do Sul, e agora produzem esse golpe em Honduras, para ter lá também o seu quartel para o esmagamento dos povos da região.
A Grande Mídia tem Interesses de Classe a Preservar
E a grande mídia não cessa de atacar Hugo Chávez, como se houvesse uma preparação para a guerra por iniciativa do governo venezuelano e não que as iniciativas deste sejam uma resposta defensiva às ameaças vindas do imperialismo estadunidense para socorrer as oligarquias atrasadas da América Latina e do Caribe e para garantir aqui, mesmo que pela força, os interesses dos monopólios de origem norte-americana. E por que os meios de comunicação agem assim? O fazem porque também são monopólios privados, também têm interesses de classe a preservar. A rede Globo (maior conglomerado de televisão, rádio e jornais do Brasil), por exemplo, foi criada em 1965, um ano depois do golpe de Estado brasileiro, com recursos vindos dos Estados Unidos, o que era proibido pela legislação brasileira, e isso é de conhecimento público há décadas. Mas, independente disso, a maior parte dos meios de comunicação no Brasil e nos outros países do continente são monopólios privados, pertencentes a poucas famílias. Portanto, essa mídia é golpista e que ninguém se engane com seu discurso pretensamente democrático e livre.
Os meios de comunicação têm sido usados para satanizar os movimentos populares autônomos e suas lideranças. Tem servido para satanizar também os governos que efetivamente se colocam ao lado das mudanças estruturais necessárias. Falar em socialismo para essa mídia, a menos que seja apenas um charme para os salões nobres das elites nacionais, é uma ofensa. Eles não querem ouvir falar em socialismo, a não ser que seja para criticar, para mentir, para espalhar fantasmas que nunca existiram. Mas, se o povo se levantar e colocar na ordem do dia a exigência de seus direitos, se o povo impor a democracia substancial no lugar dessa democracia formal que eles querem, os meios de comunicação atacam de forma vil, mentirosa e ardilosa, mesmo que ninguém pronuncie uma única vez a palavra socialismo. Então, no essencial, eles são contra a realização dos direitos elementares dos povos, já que estes direitos são incompatíveis com a manutenção da ordem econômica, social e política que interessa a manutenção e ampliação dos lucros dos monopólios locais, do latifúndio e dos monopólios imperialistas.
Atacam os lideres legítimos do povo para que a grande massa que só se informa pelos grandes meios de comunicação fique inerte na sua pobreza, e não participe dos movimentos sociais e políticos que propõe as mudanças necessárias para a construção da dignidade humana. Foi assim que mantiveram por décadas e séculos a maioria do povo esperando apenas a próxima eleição para então tentar mudar sua realidade de fome e miséria, e a mudança não veio porque os governos constituídos pelos processos eleitorais, na maioria das vezes, foram meros seguidores das políticas de interesse dos monopólios, do latifúndio e do imperialismo. E, sendo dessa forma, os processos eleitorais são sempre bem saudados com entusiasmo pelas forças de direita e pelos meios de comunicação de massa. No entanto, quando os povos se levantam e elegem governos comprometidos de fato com mudanças, lá vêm todos os gorilas, mais ou menos disfarçados de democratas, e impõe seus golpes de Estado. Foi por isso que da década de 1950 à década de 1980 todos os países do América Latina e do Caribe passaram por golpes de Estado, a exceção do México, com sua “ditadura perfeita”, porque realizou todas as políticas de direita através de governos eleitos.
O massacre físico e ideológico das forças populares autônomas ao largo de três décadas, sob governos ditatoriais permitiu a “abertura” democrática a partir dos anos 80 do século passado, uma reciclagem da ditadura, com manutenção das instituições de espionagem, controle social e contenção das forças populares. Os monopólios, o latifúndio e o imperialismo passaram a administrar seus interesses por novos meios, permitindo ao povo um voto a cada quatro anos. Mais duas décadas de empobrecimento, de privatizações, de retirada de direitos, e o povo começa a marchar para exigir mudanças substanciais. E lá vêm os golpistas, a satanizar os movimentos populares e seus líderes, promovendo um massacre ideológico sem direito de resposta. Os governos dos países que têm conseguido avançar são caluniados de forma maldosa, para que os povos dos países vizinhos não prestem atenção nos avanços que tais povos estão alcançando.
Calúnia como Arma Ideológica Contra as Forças Populares
O governo hondurenho de Manuel Zelaya não é um governo identificado com as lutas populares ou com partidos de esquerda. Não tinha qualquer motivo para o golpe, não tivesse Zelaya inscrito Honduras na ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos da América) e decidido oportunizar ao povo o direito de decidir sobre a convocação ou não de uma Assembléia Constituinte. Os golpistas erraram os cálculos, inclusive porque não satanizaram Zelaya antes do golpe, de forma que o povo que estava na expectativa acabou percebendo que o golpe não era contra Zelaya e sim contra ele próprio, para que ele, o povo, não pudesse decidir se quer ou não uma Assembléia Constituinte. Depois do golpe os meios de direita e todos os agentes que conseguem arregimentar, mesmo que mediante pagamento, estão tratando de satanizar a Zelaya, mas agora é tarde, porque o povo saiu antes, e está em maior número. Os meios de comunicação golpistas estão a noticiar o financiamento da resistência pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP), que teria distribuído três milhões de dólares para a resistência hondurenha. Sem sombra de dúvida essa é uma tripla calúnia, pois a FARC-EP é uma insurgência legítima do povo colombiano, e não tem laços com o tráfico de entorpecentes, ao contrário do presidente colombiano Álvaro Urube, que quando parlamentar era contrário à extradição de traficantes internacionais para os Estados Unidos, e até mesmo teve relação de amizade com Pablo Escobar, o chefe supremo do cartel de Medellín, de quem comprou, ou de quem ganhou, uma avião. É calúnia pela segunda vez porque hoje as FARC-EP estão circunscritas às montanhas, sobretudo depois da morte de seus maiores dirigentes: Manuel Marulanda Vélez e Raul Reyes, de sorte que não teria a menor possibilidade de realizar o financiamento de qualquer coisa fora da montanha. E é calúnia pela terceira vez porque a resistência hondurenha sobrevive com grandes dificuldades, sem todo esse potencial financeiro que alegam. Seus meios de comunicação são simples tablóides em preto e branco e nem mesmo possuem bons carros de som nas ruas. A propaganda da resistência hondurenha é feita por este pequeno jornal de quatro páginas, por panfletos fotocopiados e por pichações nos muros das cidades, contra modernos meios de comunicação de massa, incluindo as maiores redes de televisão.
Espalham calúnias e mentiras as mais desavergonhadas contra Manuel Zelaya, Hugo Chávez, Evo Morales, Rafael Correa, Fidel Castro, assim como o fizeram no passado contra Che Guevara, José Martí, Solano Lopes, João Goulart, Zumbi dos Palamares, e tantos outros. Todo movimento social ou político e suas lideranças que contestam esta ordem de fome, miséria e opressão provocada pelo domínio dos monopólios, do latifúndio e do imperialismo, é tratada pelos meios de comunicação de massa e pelos aparatos do Estado como inimigos, e têm sido eficientes em aterrorizar as amplas massas desorganizadas da sociedade, para que não se aproximem e nem queiram conhecer estes movimentos e seus líderes. Como os líderes de direita não tem a menor intenção de estar ao lado do povo, mesmo porque a convivência seria impossível, a maior parte do povo, mesmo dos trabalhadores assalariados, fica inerte, se informando apenas pelos meios de comunicação, e formando uma consciência parcial e torta acerca da sua própria situação. É assim que a classe economicamente dominante mantém seus poderes, controlando os aparatos do Estado autocrático por meio da corrupção sistêmica, já considerada normal e até mesmo legalizada em muitos aspectos, como o financiamento privado para as campanhas eleitorais. As imensas camadas pobres da população ficam órfãs de movimentos e líderes nos quais se referenciar para desenvolver as lutas necessárias à sua própria emancipação, e isso dificulta a construção de movimentos vigorosos e organizados para os enfrentamentos necessários numa sociedade de classes. Por essa razão, os levantes dos povos da América Latina e do Caribe nos últimos dez anos têm surgido em circunstâncias inesperadas e muitas vezes sem uma direção política conseqüente que possa conduzir à vitórias. Os líderes e movimentos que não mataram pela violência aniquilam pela calúnia, produzindo essa ausência de reconhecimento de qualquer referência.
Mas o Povo se Levanta e Forja Novos Líderes e Novas Ferramentas
A constatação que já era possível antes, mas que bateu em nossa cara com toda força depois da viagem a Honduras é que os inimigos do povo não vão vencer outra vez em nosso continente, pois já não resolve satanizar alguns movimentos e seus líderes, pois o povo se levanta mesmo de forma espontânea, e exige que os governos realizem as mudanças estruturais necessárias. Não foi Chávez quem criou a revolução bolivariana na Venezuela, e sim o povo que descobriu um líder que não o trairia e colocou esse líder na presidência da república para fazer a revolução bolivariana. Não foi Rafael Correa que descobriu e criou a vontade do povo equatoriano em ter mudanças, em mudar a constituição para realizar o poder popular, foi o povo equatoriano que derrubou os governos que o estavam traindo, e descobriu em Rafael Correa o líder capaz de conduzir um processo de mudança. Não foi o indígena Evo Morales quem fez os levantes populares da massa popular e indígena da Bolívia, foram os indígenas e as gentes do povo boliviano que realizaram as imensas mobilizações, derrubaram dois governos traidores e elegeram o indígena Evo Morales para realizar as mudanças que queriam. Assim, não adianta os meios de comunicação e os demais monopólios, com todo seu aparato de difusão de mentiras e de violência, continuar satanizando os movimentos e seus líderes, pois a vontade por mudança está na cabeça do povo, e vem direto do seu organismo insuficientemente alimentado, da sua angústia historicamente construída por gerações de lutadores e de famintos. Se querem satanizar, caluniar, perseguir, condenar ou mesmo matar alguém, terão que fazer isso contra o povo, e em grande número. E é isso que estão fazendo em Honduras. Mas, mesmo que os golpistas consigam permanecer no governo e realizar os processos eleitorais para dar legitimidade à política que pretendem instituir, a direita hondurenha e continental não terá vitória duradoura em Honduras, pois o povo começou a caminhar, e Honduras não será mais a mesma depois desse golpe, até mesmo porque um dos maiores partidos do país está dividido em várias partes, tendo liberais na resistência, no palácio golpista e ainda aqueles que dizem que não têm nada com isso.
O que está muito claro é que o povo quer lutar, e que luta sempre que surge um movimento ou um líder que lhe inspire confiança. A capacidade de superação de um povo, seu espírito de sacrifício, está para além do compreensível. Está para além do medo de morrer ou do receio de matar. Os povos da América Latina e do Caribe estão aptos para vencer ou para morrer, assim como já morreram com Zumbi dos Palmares, com Lempira, com Sandino, com Chê Guevara, com Luiz Carlos Prestes, com Solano Lopes, com Artigas, com Bolívar, com Martí e com todos os líderes que não traíram. O povo latino-americano e caribenho está apto também a lutar e a vencer, assim como venceram com Fidel Castro em Cuba, e como tem lutado e vencido com Hugo Chávez na Venezuela. É preciso estruturar os instrumentos organizativos, difundir conhecimento, seriedade e demonstrar capacidade de luta. O povo se levantará sempre, forjando novos líderes.
Se é lamentável para o conjunto da Nossa América a existência de um golpe em Honduras, é também um ensinamento para que saibamos sempre com mais clareza que todos os processos de mudanças precisam de instrumentos organizativos para suportar os golpes adversos, que com certeza sempre são desferidos pelo inimigo, da forma mais sórdida e traiçoeira. Se ressuscitam velhos fantasmas, que muitos consideravam enterrados, temos que construir os mecanismos para exorcizá-los, para todo o sempre. É preciso que todos os defensores da democracia, da soberania popular mais legítima, manifestem seu rechaço mais veemente ao golpe em Honduras, pois a consolidação daquele seria uma permissão para que façam isso em outros países, inclusive no nosso. Mas, para além disso, temos que estar preparados em todas as partes do nosso vasto continente para enfrentar os golpes que buscarão efetuar contra todos nós na medida em que nossas forças forem se tornando mais ameaçadoras contra a dominação dos monopólios, do latifúndio e do imperialismo.
É preciso que os lutadores populares, que os movimentos sociais autônomos, que os partidos de esquerda reflitamos com realismo sobre as mudanças que estão em curso na América Latina e no Caribe, e que tomemos medidas para que as mudanças sejam aprofundadas, com mais democracia substancial, com mais poder popular, com mais coragem de ousar e com menos medo de caminhar ao socialismo. Formar no nosso país um bloco de forças sociais anti-monopolista, anti-imperialista e anti-latifundiário é condição para interligar uma estratégia socialista com os anseios mais profundos do povo pobre e trabalhador por mudanças imediatas e de médio prazos. Não tem como escapar da necessidade de articulação de um movimento internacionalista na América Latina e no Caribe, unindo em um corpo programático, político e orgânico, todas as lutas populares em nosso continente, com participação das forças que já estão no governo e com aquelas que continuam a batalha apenas nas ruas. Este movimento precisa estar articulado em todo o continente, preservando a autonomia de cada povo para definir seus ritmos e suas formas, mas, definitivamente, temos, todos, que buscar os mecanismos de defesa preventiva contra os golpes, fortalecendo a consciência das massas e dos militantes quanto a esta necessidade. Se hoje nos atacam com detenções, multas, interditos, bombas de gás e tiros de borracha porque fizemos uma greve, ou porque numa manifestação se interrompe por algumas horas uma rodovia, amanhã, quando nossas forças forem capazes de façanhas mais importantes, nos atacarão com munição letal (como já tem ocorrido), com extradição, com torturas, com largos anos de prisão. Se não estivermos minimamente organizados, e preparados em todos os sentidos contra estes golpes, não estaremos à altura da luta que nosso povo é capaz de realizar.
São José – Santa Catarina, 23 de agosto de 2009.
* Amauri Soares é integrante da Corrente Comunista Luiz Carlos Prestes, e deputado estadual em Santa Catarina, no Sul do Brasil. Faz parte da Associação de Praças do Estado de Santa Catarina, uma organização autônoma e de massa dos soldados, cabos, sargentos e subtenentes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, a APRASC.
¹ Este artigo é fruto de um esforço para valorizar a viagem realizada a Honduras entre os dias 10 de 13 de agosto de 2009, para “acompanhar” a situação naquele país depois do golpe de Estado realizado pela direita local com apoio dos monopólios gringos no dia 28 de junho do mesmo ano. A viagem, em companhia de Ivan Pinheiro, Secretário Geral do Partido Comunista Brasileiro – PCB e de Marcelo Buzetto, integrante das Relações Internacionais da Direção Nacional do MST, foi uma experiência extraordinária. Teria muito mais o que falar, como da solidariedade ilimitada do Sem Terra Marcelo Buzetto, que voltou para o meio do gás e na direção dos militares repressores que avançavam para ajudar a levantar uma senhora idosa que havia caído, e só largou o braço desta senhora quando os familiares assumiram sua segurança. Poderia falar muito ainda da angústia do dirigente comunista Ivan Pinheiro em entender o que está acontecendo naquele país, e de sua vontade imensa de descobrir comunistas no meio de cinqüenta mil manifestantes. E o que é melhor: ele conseguiu!
¹ Este artigo é fruto de um esforço para valorizar a viagem realizada a Honduras entre os dias 10 de 13 de agosto de 2009, para “acompanhar” a situação naquele país depois do golpe de Estado realizado pela direita local com apoio dos monopólios gringos no dia 28 de junho do mesmo ano. A viagem, em companhia de Ivan Pinheiro, Secretário Geral do Partido Comunista Brasileiro – PCB e de Marcelo Buzetto, integrante das Relações Internacionais da Direção Nacional do MST, foi uma experiência extraordinária. Teria muito mais o que falar, como da solidariedade ilimitada do Sem Terra Marcelo Buzetto, que voltou para o meio do gás e na direção dos militares repressores que avançavam para ajudar a levantar uma senhora idosa que havia caído, e só largou o braço desta senhora quando os familiares assumiram sua segurança. Poderia falar muito ainda da angústia do dirigente comunista Ivan Pinheiro em entender o que está acontecendo naquele país, e de sua vontade imensa de descobrir comunistas no meio de cinqüenta mil manifestantes. E o que é melhor: ele conseguiu!
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